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O Retorno do Capitão insurgente Marcos

Primeira parte

OS MOTIVOS DO LOBO.
RUBÉN DARÍO.
NICARÁGUA.

O HOMEM QUE TEM UM CORAÇÃO DE LÍRIO,
ALMA DE QUERUBIM, LÍNGUA CELESTIAL,
O MÍNIMO E DOCE FRANCISCO DE ASSIS,
ESTÁ COM UM RÍSPIDO E SOMBRIO ANIMAL,
UMA BESTA TEMEROSA, DE SANGUE E ROUBO,
AS MANDÍBULAS DA FÚRIA, OS OLHOS DO MAL:
O LOBO DE GUBBIO, O TERRÍVEL LOBO,
RAIVOSO, ASSOLOU OS ARREDORES;
CRUELMENTE DESFEZ TODOS OS REBANHOS;
DEVOROU CORDEIROS, DEVOROU PASTORES,
E SÃO INCONTÁVEIS SUAS MORTES E DANOS.

CAÇADORES ROBUSTOS ARMADOS DE FERROS
FORAM DESPEDAÇADOS. OS DUROS DENTES
DERROTARAM OS MAIS VALENTES CÃES,
ASSIM COMO CABRITOS E CORDEIROS.

FRANCISCO SAIU:
EM BUSCA DO LOBO
EM SUA TOCA.
PERTO DA CAVERNA, ELE ENCONTROU A FERA
ENORME, QUE AO VÊ-LO SE LANÇOU FEROZ
CONTRA ELE. FRANCISCO, COM SUA DOCE VOZ,
LEVANTANDO A MÃO,
AO LOBO FURIOSO DISSE: – PAZ, IRMÃO
LOBO! – O ANIMAL
CONTEMPLOU O HOMEM DE TOSCA VESTIMENTA;
ABANDONOU SEU AR AGRESSIVO,
FECHOU AS FAUCES ABERTAS,
E DISSE: – ESTÁ BEM, IRMÃO FRANCISCO! –
COMO! – EXCLAMOU O SANTO. É A LEI QUE VOCÊ VIVA
DE HORROR E DE MORTE?
O SANGUE QUE DERRAMA
SUA BOCA DIABÓLICA, O PESAR E O ESPANTO
QUE VOCÊ ESPALHA, O CHORO
DOS CAMPONESES, O GRITO, A DOR
DE TANTAS CRIATURAS DE NOSSO SENHOR,
NÃO VÃO CONTER SEU ÓDIO INFERNAL?
VOCÊ VEM DO INFERNO?
INCUTIRAM EM VOCÊ SEU RANCOR ETERNO
LÚCIFER OU BELIAL?
E O GRANDE LOBO, HUMILDE: É UM INVERNO RIGOROSO,
E A FOME É HORRÍVEL! NO BOSQUE CONGELADO,
NÃO ENCONTREI O QUE COMER; E PROCUREI O GADO,
E ÀS VEZES COMI GADO E PASTORES.
O SANGUE? EU VI MAIS DE UM CAÇADOR
EM SEU CAVALO, LEVANDO O FALCÃO
NO PUNHO; OU CORRENDO ATRÁS DO JAVALI,
DO URSO OU DO CERVO; E MAIS DE UM VI,
MANCHAR-SE DE SANGUE, FERIR, TORTURAR,
DO BRAMIDO ROUCO AO CLAMOR SURDO,
OS ANIMAIS DE NOSSO SENHOR.
E NÃO ERA POR FOME QUE IAM CAÇAR.

FRANCISCO RESPONDE: NO HOMEM EXISTE A MÁ FERMENTAÇÃO.
QUANDO NASCE, ELE VEM COM PECADO. É TRISTE.
MAS A ALMA SIMPLES DA BESTA É PURA.
A PARTIR DE HOJE, VOCÊ TERÁ
O QUE COMER.
DEIXARÁ EM PAZ
OS REBANHOS E AS PESSOAS DESTE PAÍS.
QUE DEUS SUAVIZE SEU COMPORTAMENTO SELVAGEM!
ESTÁ BEM, IRMÃO FRANCISCO DE ASSIS.

DIANTE DO SENHOR, QUE TUDO ATA E DESATA,
EM FÉ DE PROMESSA, ESTENDA-ME A PATA.

O LOBO ESTENDEU A PATA AO IRMÃO
DE ASSIS, QUE POR SUA VEZ ESTENDEU A MÃO.
FORAM PARA A ALDEIA. AS PESSOAS VIAM
E O QUE OLHAVAM, NÃO ACREDITARIAM
A FEROZ FERA SEGUIA ATRÁS DO RELIGIOSO,
ABAIXANDO A CABEÇA, SEGUINDO-O CALMAMENTE
COMO UM CÃO DE CASA, OU COMO UM CORDEIRO.

FRANCISCO CHAMOU AS PESSOAS À PRAÇA
E LÁ PREGOU.
E DISSE: EIS UMA CAÇADA AMIGÁVEL.
O IRMÃO LOBO ESTÁ VINDO COMIGO;
ELE JUROU NÃO SER MAIS SEU INIMIGO,
E NÃO REPETIR SEUS ATAQUES SANGRENTOS.
VOCÊS, POR SUA VEZ, DARÃO OS ALIMENTOS.
À POBRE CRIATURA DE DEUS. ASSIM SEJA!,
RESPONDEU TODA A POPULAÇÃO DA ALDEIA.
E DEPOIS, EM SINAL
DE CONTENTAMENTO,
A BOA FERA MOVEU A CABEÇA E A CAUDA,
E ENTROU COM FRANCISCO DE ASSIS NO CONVENTO.

POR ALGUM TEMPO, O LOBO FICOU TRANQUILO
NO SAGRADO REFÚGIO.
SUAS ORELHAS ÁSPERAS OS SALMOS OUVIAM
E SEUS OLHOS CLAROS SE UMEDECIAM.
ELE APRENDEU MIL GRAÇAS E FAZIA MIL JOGOS
QUANDO IA À COZINHA COM OS IRMÃOS LEIGOS.
E QUANDO FRANCISCO SUA ORAÇÃO FAZIA,
O LOBO SUAS HUMILDES SANDÁLIAS LAMBIA.
ELE SAÍA À RUA,
IA PELA MONTANHA, DESCIA ATÉ O VALE,
ENTRAVA NAS CASAS E LHE DAVAM ALGO
PARA COMER. ELES O VIAM COMO UM DÓCIL CÃO.
UM DIA, FRANCISCO SE AUSENTOU. E O LOBO
DOCE, O LOBO MANSO E BOM, O LOBO PROBO,
DESAPARECEU, VOLTOU PARA A MONTANHA,
E SEUS UIVOS E SUA FÚRIA RECOMEÇARAM.
MAIS UMA VEZ, O MEDO E O ALARME SE INSTALARAM,
ENTRE OS MORADORES E PASTORES;
O PÂNICO DOMINOU OS ARREDORES,
A CORAGEM E AS ARMAS DE NADA SERVIRAM,
POIS A BESTA FERA
NUNCA DEU TRÉGUA AO SEU FUROR JAMAIS,
COMO SE ESTIVESSE
POSSUÍDA POR MOLOCH OU SATANÁS.

QUANDO VOLTOU À ALDEIA O DIVINO SANTO,
TODOS O PROCURARAM COM QUEIXA E PRANTO,
E DERAM TESTEMUNHO
DAS AFLIÇÕES E PERDAS QUE SOFRIAM
POR CAUSA DAQUELE INFAME LOBO DO DEMÔNIO.

FRANCISCO DE ASSIS FICOU SEVERO.
ELE FOI ATÉ A MONTANHA
PARA ENCONTRAR O FALSO LOBO CARNICEIRO.
E PERTO DE SUA CAVERNA, ENCONTROU A PRAGA.

EM NOME DO PAI DO SAGRADO UNIVERSO,
EU TE CONJURO – DISSE -, Ó LOBO PERVERSO!,
A RESPONDER: POR QUE VOCÊ VOLTOU AO MAL?
RESPONDA. EU ESCUTO.
COMO EM UMA LUTA SURDA, O ANIMAL FALOU,
A BOCA ESPUMANDO E O OLHAR FATAL:
– IRMÃO FRANCISCO, NÃO SE APROXIME MUITO…
EU ESTAVA EM PAZ NO CONVENTO;
À CIDADE IA,
E SE ME DAVAM ALGO, FICAVA CONTENTE
E COMIA TRANQUILAMENTE.
MAS COMECEI A PERCEBER QUE EM TODAS AS CASAS
ESTAVAM A INVEJA, A RAIVA, A IRA,
E EM TODOS OS ROSTOS ARDIAM AS BRASAS
DO ÓDIO, DA LUXÚRIA, DA INFÂMIA E DA MENTIRA.
IRMÃOS LUTAVAM FAZIAM A GUERRA,
OS FRACOS PERDIAM, OS MAUS GANHARAM,
MACHOS E FÊMEAS SE TRATAVAM COMO CÃES,
E UM BOM DIA TODOS ME ESPANCARAM.
ELES ME VIRAM HUMILDE, LAMBENDO AS MÃOS
E OS PÉS. EU SEGUIA SUAS SAGRADAS LEIS,
TODAS AS CRIATURAS ERAM MEUS IRMÃOS:
OS IRMÃOS HOMENS, OS IRMÃOS BOIS,
IRMÃS ESTRELAS E IRMÃOS VERMES.
E ASSIM, ELES ME ESPANCARAM E ME JOGARAM FORA.
ELES RIRAM COMO ÁGUA FERVENTE,
E DENTRO DE MIM REVIVEU A FERA,
E EU ME TORNEI UM LOBO MAU DE REPENTE;
MAS SEMPRE MELHOR DO QUE ESSA MÁ GENTE.
E EU RECOMECEI A LUTAR AQUI,
A ME DEFENDER E ME ALIMENTAR.
ASSIM COMO O URSO, ASSIM COMO O JAVALI,
QUE PARA SOBREVIVER PRECISAM MATAR.
DEIXE-ME NA MONTANHA, DEIXE-ME NO PENHASCO,
DEIXE-ME EXISTIR EM MINHA LIBERDADE,
VÁ PARA SEU CONVENTO, IRMÃO FRANCISCO,
SIGA SEU CAMINHO E SUA SANTIDADE.

O SANTO DE ASSIS NÃO DISSE NADA.
ELE OLHOU PROFUNDAMENTE,
E PARTIU COM LÁGRIMAS E DESESPEROS,
E FALOU COM O DEUS ETERNO COM SEU CORAÇÃO.
O VENTO DO BOSQUE LEVOU SUA ORAÇÃO,
QUE ERA: PAI NOSSO, QUE ESTÁS NOS CÉUS…

DEZEMBRO DE 1913.

Segunda parte

Morreu SupGaleano. Morreu como viveu: infeliz.

No entanto, teve o cuidado de, antes de falecer, devolver o nome àquele que é carne e sangue herdado do mestre Galeano. Recomendou mantê-lo vivo, isto é, lutando. Portanto, Galeano continuará caminhando nestas montanhas.
Quanto ao restante, foi algo simples. Começou a cantarolar algo como “já sei que estou louco, louco, louco”, e, justo antes de expirar, disse, ou melhor, perguntou: “Os mortos espirram?”, e foi isso. Essas foram suas últimas palavras. Nenhuma frase para a história, nem para um túmulo, nem para uma anedota contada em volta de uma fogueira. Apenas essa pergunta absurda, anacrônica, extemporânea: “Os mortos espirram?”
Depois ficou imóvel, a respiração cansada suspensa, os olhos fechados, os lábios finalmente silenciados, as mãos tensas.
Partimos. Quase ao sair da cabana, já no umbral da porta, ouvimos um espirro. O SubMoy olhou para mim e eu para ele, com um “saúde” apenas insinuado. Nenhum de nós havia espirrado. Olhamos para onde estava o corpo do falecido e nada. SubMoy apenas disse “boa pergunta”. Não disse uma palavra, mas pensei “certamente deve estar com a lua, vagando por Callao”.
No entanto, economizamos no funeral. Embora tenhamos perdido o café e os tamales.

-*-

Eu sei que ninguém está interessado em mais uma morte, e menos ainda na do agora falecido SupGaleano. Na realidade, conto isso porque ele deixou esse poema de Rubén Darío com o qual iniciou esta série de textos. Ignorando a evidente alusão à Nicarágua que resiste e persiste – poderia até ser visto como uma referência à atual guerra do Estado de Israel contra o povo da Palestina, mas, no momento de sua morte, o terror que hoje assola o mundo ainda não havia sido retomado -, deixou essa poesia como referência. Mais como uma resposta a alguém que perguntou como explicar o que está acontecendo agora em Chiapas, México e o mundo.
E, claro, como uma discreta homenagem ao mestre Galeano – de quem herdou o nome -, deixou o que chamou de “controle de leitura”:
Quem começou? Quem é culpado? Quem é inocente? Quem é o bom e quem é o mau? Qual é a posição de Francisco de Assis? Ele falha, ou é o lobo, ou os pastores, ou todos? Por que o de Assis só concebe que se faça um acordo baseando-se em que o lobo renuncie a ser o que é?
Embora isso tenha sido há meses, o texto gerou argumentações e discussões que persistem até hoje. Portanto, descrevo uma delas:
É como uma espécie de reunião ou assembleia ou algo como uma mesa de debates. Estão os melhores de cada casa: doutos especialistas em tudo, militantes e internacionalistas de todas as causas, exceto a de sua geografia, espontâneos com doutorado em redes sociais (a maioria), e um ou outro que, ao ver a agitação, se aproximou para ver se davam baldes, bonés ou camisetas com o nome do partido que fosse. Não foram poucos os que se aproximaram para entender sobre o que era toda aquela confusão.
“Você não é mais do que um agente do sionismo expansionista e imperialista!” – gritava um.
“E você é apenas um propagandista do terrorismo árabe muçulmano fundamentalista!” – respondia outro, furioso.
Já havia vários confrontos, mas até então, tinha sido apenas alguns empurrões no estilo “nos vemos lá fora”.
Chegaram a esse ponto porque estavam analisando o poema de Rubén Darío, “Os Motivos do Lobo”.
Nem tudo havia sido uma troca de adjetivos, insinuações e caras feias. Começou como tudo nesses lugares: com bons modos, frases contundentes, “intervenções breves” – que costumavam durar meia hora ou mais – e abundância de citações e notas de rodapé.
Apenas homens, claro, porque o debate era organizado pelo chamado “Clube de Toby Hipertextual”.
“O Lobo é o bom”, alguém disse, “porque ele apenas matava por fome, por necessidade”.
“Não”, argumentou outro, “ele é o mau porque matava ovelhas, que eram o sustento dos pastores. E ele mesmo reconheceu que ‘às vezes comia cordeiro e pastor’”.
Outro: “os maus são os habitantes, porque não mantiveram o acordo”.
Um outro opinou: “a culpa é de Assis, que conseguiu o acordo pedindo ao lobo que deixasse de ser lobo, o que é questionável, e depois não permaneceu para manter o pacto”.
Outro ainda: “Mas Assis aponta que o ser humano é mau por natureza”.
Reiterações de um lado e de outro. Porém, parece que, se uma pesquisa fosse realizada agora, o lobo teria uma vantagem de dois dígitos sobre a aldeia dos pastores. Mas uma hábil manobra nas redes sociais fez com que a hashtag “#loboassassino” fosse mais popular do que #morramospastores. Assim, foi clara a vitória dos influencers pró-pastores sobre os pró-lobo, pelo menos nas redes sociais.
Houve quem argumentasse a favor de dois Estados coexistindo no mesmo território: o Estado Lobo e o Estado Pastor.
E outro por um Estado Plurinacional, com lobos e pastores, convivendo sob um mesmo opressor, desculpe, quis dizer, sob um mesmo Estado. Outro respondeu que isso era impossível, dados os antecedentes de cada parte.
Um senhor de terno e gravata se levanta e pede a palavra: “Se Rubén (assim ele se referiu, omitindo o Darío) seguiu a partir da lenda de Gubbio, então podemos fazer o mesmo. Vamos continuar o poema:
Os pastores, usando seu legítimo direito de defesa, atacam o lobo. Primeiro destruindo sua toca com bombardeios, e depois entrando com tanques e infantaria. Parece-me, colegas, que o final é previsível: a violência terrorista e animal do lobo é aniquilada, e os pastores podem continuar sua vida bucólica, tosquiando ovelhas para uma poderosa firma transnacional que produz roupas para outra firma multinacional igualmente poderosa que, por sua vez, deve a uma instituição financeira internacional ainda mais poderosa; o que levará os pastores a se tornarem eficientes trabalhadores de suas próprias terras – claro, com todos os benefícios trabalhistas por lei -, e elevará essa aldeia ao padrão do primeiro mundo, com modernas rodovias, altos edifícios e até um trem turístico onde visitantes do mundo todo podem apreciar as ruínas do que antes eram prados, florestas e nascentes. A aniquilação do lobo trará paz e prosperidade à região. Claro, alguns animais morrerão, independentemente do número ou espécie, mas são apenas danos colaterais facilmente esquecidos. Afinal, não podemos pedir às bombas que distingam entre um lobo e uma ovelha, ou que limitem sua onda expansiva para não prejudicar pássaros e árvores. A paz será conquistada e ninguém sentirá falta do lobo.”
Alguém mais se levanta e aponta: “Mas o lobo tem apoio internacional e habitava aquele lugar antes. O sistema cortou árvores para pastagens, alterando o equilíbrio ecológico, reduzindo o número e tipo de animais que o lobo consumia para viver. E espera-se que os descendentes do lobo busquem vingança justa”.
“Ah, então o lobo também matava outros seres. Ele é igual aos pastores”, retruca alguém.
E assim continuaram, dando argumentos tão bons quanto os aqui citados, repletos de engenho, erudição e muitas referências bibliográficas.
Mas a moderação não durou muito: passaram de lobo e pastores para a guerra Netanyahu – Hamás, e a discussão foi esquentando até chegar ao ponto que inicia esta anedota, cortesia póstuma do agora falecido SupGaleano.
Porém, naquele momento, no final da sala, uma mão pequena se levantou pedindo a palavra. O moderador não conseguiu ver de quem era a mão, então concedeu a palavra “à pessoa que está levantando a mão lá atrás”.
Todos olharam e quase gritaram de escândalo e reprovação. Era uma menina que carregava um ursinho de pelúcia quase do seu tamanho, e vestia uma blusa branca bordada e uma calça com um gatinho perto do tornozelo direito. Enfim, o traje típico para uma festa de aniversário ou algo assim.
A surpresa foi tanta que todos ficaram em silêncio, com os olhos fixos na menina.
Ela se levantou na cadeira, pensando que assim seria melhor ouvida, e perguntou:
“E as crias?”
A surpresa então se transformou em murmúrios condenatórios: “Quais crias? Do que essa menina está falando? Quem diabos deixou uma mulher entrar neste recinto sagrado? E pior, é uma criança mulher!”
A menina desceu da cadeira e, sempre carregando seu ursinho de pelúcia obviamente obeso – referindo-se ao urso -, foi em direção à saída dizendo:
“As crias. Ou seja, as crias do lobo e as crias dos pastores. Seus filhotinhos. Quem pensa neles? Com quem vou conversar? E onde vamos brincar?”

Das montanhas do sudeste mexicano.

Capitão Insurgente Marcos.

México, Outubro de 2023.

P.S.- Liberdade incondicional para Manuel Gómez Vázquez (sequestrado desde 2020 pelo governo estatal de Chiapas) e José Díaz Gómez (sequestrado desde o ano passado), indígenas bases de apoio zapatistas presos por isso, por serem zapatistas. Depois não perguntem quem semeou o que colherão.

P.S.- Furacão OTIS: Centro de coleta para os povos originários no estado de Guerrero: no endereço da Casa dos Povos “Samir Flores Soberanes”, localizado na Av. México-Coyoacán 343, colônia Xoco, Prefeitura Benito Juárez, Cidade do México, C.P. 03330. Depósitos e transferências bancárias em apoio a estes povos e comunidades na conta Número 0113643034, CLABE 012540001136430347, código SWIFT BCMRMXMMPYM, do banco BBVA México, agência 1769. Em nome de: “Ciência Social ao Serviço dos Povos Originários”. Telefone: 5526907936.

 

Terceira parte

 

Dizia o finado SupMarcos que não se podiam entender as razões da revolta sem conhecer antes a história de Paticha, a menina de menos de 5 anos que morreu em seus braços por falta de um comprimido para a febre. Eu agora lhes digo que não poderão entender o que depois lhes explicará em detalhes o Subcomandante Insurgente Moisés se não conhecerem a história de Dení.

Dení é uma menina indígena, de sangue e raiz maia. É filha de uma insurgenta e um insurgente zapatista. Quando nasceu, há uns 5 anos, deram-lhe esse nome para honrar a memória de uma companheira que morreu muitos anos atrás.

Dení foi conhecida pelo finado SupGaleano quando era um Patz. Ou seja, um tamalito, por estar gordinha. De fato, assim ele a chamava: “Patz”. Agora ela está magrinha, porque anda de um lado para o outro. Dení, quando as insurgentas se reúnem para trabalhar, começa, segundo ela, a dar-lhes aulas de saúde autônoma. E desenha uns rabiscos que, segundo explicou depois, são promotoras de saúde. Ela disse que as promotoras são melhores porque os homens às vezes não entendem de “como mulheres que somos”. Afirma com convicção que, para ser promotora de saúde, tem que saber injetar, mas sem doer. “Porque, e se precisar de uma injeção e não quiser por doer?”

Agora estamos em uma reunião das chefas e chefes zapatistas. O pai e a mãe de Dení não estão presentes, mas a menina chegou seguindo o Tzotz e a Pelusa, que estão deitados aos pés do Subcomandante Insurgente Moisés e, aparentemente, estão atentos ao que se diz.

Alguém está explicando:

“Aqui está presente Dení e ela é, digamos, a primeira geração. Dentro de 20 anos, Dení vai ter uma filha e vai lhe dar o nome de ‘Denilita’, ela seria a segunda geração. Denilita, 20 anos depois, vai conceber uma menina que vai se chamar ‘Denilitilla’, é a terceira geração. Denilitilla, chegada aos seus 20 anos, vai procriar uma menina que se vai chamar ‘Denilititilla’, seria a quarta geração. Denilititilla, ao completar os 20, vai dar à luz uma menina e a vai chamar ‘Denilí’, a quinta geração. Denilí aos 20 anos, vai ter uma menina que se vai chamar ‘Dení Etcétera’, que vem a ser a sexta geração. Dení Etcétera, 20 anos depois, ou seja, dentro de 120 anos, vai ter uma menina que não conseguimos ver o nome, porque já está distante o seu nascimento no calendário, mas ela é a sétima geração”.

Aqui intervém o Subcomandante Insurgente Moisés: “Então nós temos que lutar para que essa menina, que vai nascer em 120 anos, seja livre e seja o que lhe der na telha ser. Então não estamos lutando para que essa menina seja zapatista ou partidária ou o que seja, mas sim para que ela possa escolher, quando tiver discernimento, qual é o seu caminho. E não só que possa decidir livremente, mas também, e principalmente, que se responsabilize por essa decisão. Ou seja, que leve em conta que todas as decisões, o que fazemos e o que deixamos de fazer, têm consequências. Então se trata de que essa menina cresça com todos os elementos para tomar uma decisão e para se responsabilizar por suas consequências.

Ou seja, que não culpe o sistema, os maus governos, seus pais e mães, seus familiares, os homens, seu parceiro (seja homem ou mulher ou o que seja), a escola, suas amizades. Porque isso é liberdade: poder fazer algo sem pressões ou obrigação, mas respondendo pelo que se fez. Ou seja, sabendo as consequências de antemão”.

O SubMoy vira-se para olhar para o agora falecido SupGaleano, como quem diz “é a sua vez”. O falecido que ainda não é falecido (mas que já sabe que em breve o será), prevê que algum dia terá que falar sobre isso para estranhos e começa:

“Essa Dení à enésima potência já não vai falar mal dos malditos homens? Sim, vai fazer isso, como sempre. Mas não vão ser seus argumentos de que a ridicularizaram, a desprezaram, a violentaram, a assediaram, a violaram, a bateram, a desapareceram, a assassinaram, a esquartejaram. Não, vai ser por coisas e assuntos normais, como que o maldito homem solta gases na cama e fede o cobertor; ou que não acerta o vaso do banheiro; ou que arrota como um bezerro; ou que compra a camiseta do seu time favorito, coloca calções, meias e sapatos especiais de futebol, para depois sentar-se a ver os jogos enquanto se empanturra de pipocas com bastante molho picante; ou que toma muito cuidado em escolher o “outfit” que vai usar por décadas: sua camiseta preferida, suas calças de treino favoritas, e suas chinelas prediletas; ou porque não larga o controle da televisão; ou que não diz que a ama, embora ela saiba que ele a ama, mas não solta um lembrete de vez em quando”.

Entre os que ouvem, as mulheres acenam afirmativamente com a cabeça como dizendo “é claro”; e os homens sorriem nervosamente.

O SubMoy sabe que é a mania do SupGaleano e que agora vai passar, no que se chama “solidariedade de gênero”, a falar mal das mulheres, então interrompe justo quando o agora finado está dizendo: “Mas é que as mulheres…”

“Bem”, diz o SubMoy, “agora estamos falando de uma menina que vai nascer daqui a 120 anos e vamos nos concentrar nisso”. Aquele que pressente que será finado senta-se, lamentando não ter podido expor sua brilhante tese contra as mulheres. O SubMoy continua:

“Então temos que pensar nessa menina. Ver longe, pois. E, olhando para o que parece muito distante, temos que ver o que temos que fazer para que essa menina seja livre.

E isso é importante porque já temos a tempestade em cima. A mesma que avisamos há quase 10 anos. A primeira coisa que vemos é que a destruição vem mais rápido. O que pensávamos que aconteceria dentro de 10 anos, já está aqui.

Vocês já explicaram isso aqui. Contaram-nos o que veem em suas zonas Tzeltal, Tzotzil, Cho´ol, Tojolabal, Mame, Zoque, Quiché. Sabem já o que está acontecendo com a mãe terra porque vivem e trabalham nela. Sabem que o tempo está mudando. “O clima”, como dizem os cidadãos. Que chove quando não deve, que está a seca quando não deve. E assim. Sabem que as sementeiras já não se podem decidir como nossos anteriores, porque o calendário vem torto, mudado.

Mas não só. Também vemos que os comportamentos dos animais mudaram, aparecem em zonas que não é seu costume e em temporadas que não lhes correspondem. Aqui e nas geografias de povos irmãos, aumentam os chamados “desastres naturais” mas que são consequência do que faz e deixa de fazer o sistema dominante, ou seja, o capitalismo. Há chuvas, como sempre, mas agora são mais ferozes e em lugares e épocas que não são as de antes. Há secas muito terríveis. E agora acontece que, numa mesma geografia – por exemplo, aqui no México -, num lado há inundações e noutro há seca e ficam sem água. Há ventos fortes como se o vento ficasse bravo e dissesse seu “já basta” e quisesse derrubar tudo. Há tremores, vulcões, pragas como nunca antes. Como se a mãe terra dissesse que até aqui nada mais, que já não. Como se a humanidade fosse uma doença, um vírus que tem que ser expulso vomitando destruição.

Mas, além de se ver que a mãe terra está como inconformada, como protestando, pois está o pior de tudo: o monstro, a Hidra, o capitalismo, que está como louco roubando e destruindo. Agora quer roubar o que antes não lhe importava e continua destruindo o pouco que resta. O capitalismo agora produz a miséria e a quem foge dela: os migrantes.

A Pandemia do COVID, que ainda continua, mostrou a incapacidade de todo um sistema de dar uma explicação real e tomar as medidas necessárias. Enquanto milhões morriam, alguns poucos ficaram mais ricos. Já se vislumbram outras pandemias e as ciências cedem passo às pseudociências e às charlatanices convertidas em projetos políticos de governo.

Vemos também o que chamamos de Crime Desorganizado, que são os mesmos maus governos, de todos os partidos políticos, que se escondem e brigam pelo dinheiro. Este Crime Desorganizado é o principal traficante de drogas e pessoas; aquele que fica com a maior parte dos apoios federais; o que sequestra, assassina, desaparece; o que faz negócio com a ajuda humanitária; o que extorque, ameaça e cobra direito de piso com impostos que são para que um candidato ou candidata digam que agora sim vão mudar as coisas, que agora sim vão se comportar bem.

Vemos povos originários irmãos que, cansados de desprezos, zombarias e mentiras, se armam para se defenderem ou para atacarem os caxlanes (não-indígenas). E os cidadãos assustando-se, sendo que eles próprios, com seu modo de merda, alimentaram esse ódio que agora sofrem e que já não tem controle. Como na soberba Jovel, colhem o que semearam.

E também vemos com tristeza que brigam entre si indígenas da mesma sangue e língua. Brigam entre si por ter os miseráveis apoios dos maus governos. Ou por tirar o pouco que têm ou que chega. Em vez de defender a terra, brigam por esmolas.

-*-

Todo isso foi avisado aos cidadãos e aos irmãos originários há quase 10 anos. Há aqueles que prestaram atenção, e muitos que nem sequer se importaram. Como se vissem e ainda veem todo esse horror como algo muito distante deles, tanto no tempo quanto na distância. Como se só vissem o que têm à frente. Não veem mais longe. Ou veem, mas não se importam.

Como já sabemos, em todos esses últimos anos, estivemos nos preparando para essa escuridão. São 10 anos nos preparando para estes dias de dor e tristeza para aqueles de nós que somos todas as cores da terra. 10 anos revendo criticamente o que fazemos e o que não fazemos, o que dizemos e calamos, o que pensamos e observamos. Preparamo-nos apesar das traições, calúnias, mentiras, paramilitares, cercos informativos, desprezos, ressentimentos e ataques daqueles que nos repreendem por não obedecê-los.

Fizemos isso em silêncio, sem alarde, tranquilos e serenos porque olhamos para longe, como nos ensinaram nossos ancestrais. E lá fora gritando para que olhemos apenas aqui, apenas um calendário e uma geografia. Muito pequeno o que eles querem que vejamos. Mas como zapatistas que somos, nosso olhar é do tamanho do nosso coração, e nosso caminhar não é de um dia, um ano, um sexênio. Nosso passo é longo e deixa marcas, embora não seja visto agora ou seja ignorado e desprezado o nosso caminho.

Sabemos bem que não foi fácil. E agora está tudo pior, e mesmo assim precisamos olhar para aquela menina dentro de 120 anos. Ou seja, temos que lutar por alguém que não vamos conhecer. Nem nós, nem seus filhos, nem os filhos de seus filhos, e assim por diante. E temos que fazer isso porque é nosso dever como zapatistas que somos.

Vêm muitas desgraças, guerras, inundações, secas, doenças, e no meio do colapso temos que olhar para longe. Se os migrantes agora são milhares, em breve serão dezenas de milhares, depois centenas de milhares. Vêm lutas e mortes entre irmãos, entre pais e filhos, entre vizinhos, entre raças, entre religiões, entre nacionalidades. Grandes construções vão arder e ninguém saberá dizer por quê, ou quem, ou para quê. Embora pareça que não, mas sim, vai piorar.

Mas, assim como quando trabalhamos a terra, desde antes da semeadura, vemos a tortilla, os tamales, o pozol em nossas casas, assim temos que ver agora essa menina.

Se não olharmos para aquela menina que já está com sua mãe, mas dentro de 120 anos, então não vamos entender o que estamos fazendo. Não vamos conseguir explicar nem aos nossos próprios companheiros. E muito menos os povos, organizações e pessoas irmãs de outras geografias vão entender.

Já podemos sobreviver à tempestade como comunidades zapatistas que somos. Mas agora se trata não só disso, mas de atravessar esta e outras tempestades que vêm, atravessar a noite e chegar àquela manhã, dentro de 120 anos, onde uma menina começa a aprender que ser livre é também ser responsável por essa liberdade.

Para isso, olhando para aquela menina lá longe, vamos fazer as mudanças e ajustes que temos discutido e acordado em comum nestes anos, e que já consultamos com todos os povos zapatistas.

Se alguém pensa que vamos receber um prêmio, ou uma estátua, ou um museu, ou letras de ouro na história, ou pagamento, ou agradecimento; pois já é hora de procurar em outro lugar. Porque a única coisa que vamos receber é que, quando estivermos morrendo, poderemos dizer “fiz a minha parte” e saber que não é mentira.

-*-

O Subcomandante Insurgente Moisés ficou em silêncio, como se esperasse que alguém se manifestasse. Ninguém o fez. Continuaram discutindo, contribuindo, planejando. Chegou a hora do almoço e vieram perguntar quando vão parar para descansar.

O Subcomandante Insurgente Moisés respondeu: “Logo, dentro de 120 anos”.

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Vou ser sincero, como sempre. Eu, o capitão, posso sonhar com esse momento em que uma menina nasce sem medo, que é livre e se responsabiliza pelo que faz e pelo que não faz. Também posso imaginá-lo. Até poderia escrever um conto ou uma história sobre isso. Mas essas mulheres e homens que tenho à frente e ao lado, todos indígenas zapatistas de raiz maia, meus chefas e chefes, não sonham, nem imaginam aquela menina. Eles a veem, a observam. E sabem o que têm que fazer para que essa menina nasça, caminhe, brinque, aprenda e cresça em outro mundo… dentro de 120 anos.

Como quando olham para a montanha. Há algo no olhar deles, como se olhassem além do tempo e do espaço. Veem a tortilla, os tamales e o pozol na mesa. E sabem que não é para eles, mas para uma menina que nem sequer está na intenção de quem serão seus pais, porque eles ainda não nasceram. Nem eles, nem os pais deles, nem seus avós, nem seus bisavós, nem seus trisavós, e assim por diante até 7 gerações. Sete gerações que começam a contar a partir desta Dení, a Dení Primeira Geração.

Por minha fé que vamos conseguir. Só que vai levar um pouco de tempo, mas não muito também.

Apenas pouco mais de um século.

Das montanhas do sudeste mexicano.

Capitão Insurgente Marcos.

 

 

México, novembro de 2023.

P.S.- Cada bomba que cai em Gaza, também cai nas capitais e nas principais cidades do mundo, só que ainda não se deram conta. Dos escombros nascerá o horror da guerra de amanhã.

P.S. VÁRIAS GUERRAS ANTES (a véspera, há quase 120 anos):

“Não seria melhor declarar a guerra francamente?

O professor respondeu com simplicidade: – Nosso Governo quer, sem dúvida, que sejam os outros a declará-la. O papel de agredido é sempre o mais agradável e justifica todas as resoluções subsequentes, por extremadas que pareçam. Lá temos pessoas que vivem bem e não desejam a guerra. É conveniente fazer-lhes crer que são os inimigos que nos a impõem, para que sintam a necessidade de se defenderem. Apenas os espíritos superiores chegam à convicção de que os grandes avanços só se realizam com a espada, e que a guerra, como dizia nosso grande Treitschke, é a mais alta forma de progresso”. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1916), de Vicente Blasco Ibáñez (Espanha 1867-1928).

 

Fonte do artigo original: https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2023/11/02/tercera-parte-deni/