Backgroound Image

Uma superpotência nuclear e um povo despossuído

Um anarquista de Jaffa sobre a violência na Palestina e a repressão israelense

Em 7 de outubro, o Hamas, o partido no poder na Faixa de Gaza, rompeu os muros de separação que cercam a área para realizar uma série de ataques. O governo israelense respondeu com uma operação militar em grande escala. Embora ambos os lados tenham atacado civis e soldados, esses eventos só podem ser compreendidos pelo prisma de décadas de repressão e limpeza étnica.

Na época dos ataques, estávamos concluindo uma entrevista com Jonathan Pollak, um anarquista de Jaffa, uma cidade palestina que era predominantemente árabe até recentemente. Participante de longa data da coletivo Anarchist Against The Wall1 e outras ações de solidariedade anticolonial, Jonathan é que atualmente está sendo processado e possivelmente preso por ter participado de uma manifestação no início deste ano. Na entrevista a seguir, ele compartilha conosco sua percepção do novo ciclo de violência que e s t á se desenrolando atualmente. Ele também descreve como o sistema judiciário israelense oprime estruturalmente os palestinos, explica como apoiar os prisioneiros palestinos e avalia a eficácia dos esforços de solidariedade ao longo dos anos.

Para obter mais informações sobre a situação em Israel e na Palestina, consulte nossa história do anarquismo israelense contemporâneo, nossa cobertura do levante de Haifa em 2021 e nossa cobertura do conflito político na sociedade israelense no início deste ano.

 

Esperamos compartilhar as perspectivas dos antiautoritários de Gaza assim que p u d e r m o s nos comunicar com eles. Ao oferecer esse espaço a alguém que cresceu na sociedade israelense, não estamos buscando destacar as opiniões ou personalidades dos cidadãos israelenses, mas sim mostrar que a situação não pode ser reduzida a um conflito étnico binário, da mesma forma que publicamos as opiniões dos anarquistas russos sobre a invasão da Ucrânia. A foto acima, tirada por Oren Ziv/ActiveStills, mostra manifestantes queimando pneus na cidade de Beita.

 

Intensificação das hostilidades

 

No sábado, 7 de outubro, quando estávamos prestes a publicar esta entrevista, o Hamas realizou uma onda d e ataques coordenados. O governo israelense respondeu com o lançamento de uma ofensiva militar em grande escala. Como você vê esses eventos de onde está?

 

Esse é um evento d e proporções históricas para a resistência palestina ao colonialismo israelense, que continua até hoje. Ainda é muito cedo para saber exatamente o que vai a c o n t e c e r , portanto, prefiro falar sobre o contexto geral da situação a fazer uma análise d e um caso que ainda está em a n d a m e n t o e cujos detalhes ainda não estão claros. Tudo o que eu disser agora poderá estar desatualizado em algumas horas.

O que podemos ter certeza, no entanto, é que teremos dias terríveis pela frente.

 

A versão resumida dessa história é que as forças do Hamas conseguiram romper o cerco que Israel está impondo brutalmente à Faixa de Gaza e penetrar nos assentamentos israelenses d o outro lado do muro, em alguns c a s o s tomando-os completamente. O número de mortos do lado israelense está na casa das centenas, e as imagens transmitidas pela mídia são terríveis e chocantes, principalmente nas redes sociais. Mas e s t o u me adiantando.

 

Alguns dos termos que uso nesse contexto podem ser confusos para as pessoas que acompanham um pouco do que está acontecendo na Palestina e que estão acostumadas com o termo “assentamentos israelenses” reservado para as áreas ocupadas por Israel a partir de 1967. No entanto, acho que é necessário entender Israel como um projeto colonial em seu próprio direito, e o sionismo como um movimento colonial para a supremacia judaica. S e r i a negligente ignorar a longa história de limpeza étnica israelense, que culminou com a limpeza étnica dos palestinos em 1948, conhecida como Nakba. A atual Faixa de Gaza, que é apenas uma fração do Distrito de Gaza da Palestina pré-1948, é o lar de refugiados de 94 cidades e vilarejos do distrito histórico que foram completamente despovoados. Atualmente, 80% dos residentes da Faixa de Gaza são refugiados, sitiados em uma área q u e , com 365 km², é a maior prisão a céu aberto do mundo. As cidades que foram tomadas ou atacadas pelos palestinos no início dos atuais combates são algumas das cidades despovoadas das quais alguns dos refugiados foram expulsos.

 

Na mídia internacional, a história é apresentada principalmente como uma guerra bilateral entre Israel e Gaza ou como uma agressão palestina unilateral e sem sentido, desprovida de qualquer contexto. O contexto que está faltando, é claro, é que os palestinos passaram por anos e anos d e subjugação colonial, e isso é particularmente verdadeiro para os palestinos na Faixa de Gaza.

Como eu disse, as imagens são sórdidas e terríveis. É impossível não ser afetado por elas. Mas elas não são suficientes em si mesmas. Além do contexto histórico já mencionado, nas últimas duas décadas, Gaza foi reduzida a pó repetidas vezes p o r ataques aéreos e operações militares israelenses. Agora, mais uma vez, os bombardeios foram retomados e, dentro da corrente principal da sociedade israelense e de sua mídia, falase abertamente em perpetrar um genocídio em Gaza. Se n a d a for feito para impedi-lo, isso pode de fato acontecer.

 

Se pedirmos aos palestinos que não recorram à violência, n ã o podemos esquecer a realidade que eles enfrentam. Quando os palestinos em Gaza se manifestaram em 2017 e 2018 contra a cerca israelense que os aprisiona, eles foram mortos a tiros às centenas. As imagens que estão circulando atualmente são sórdidas e chocantes. Não tenho a intenção de e u f e m i z a r , justificar ou desculpá-las, mas, no decorrer da luta, o caminho para a libertação quase sempre toma rumos terríveis.

 

O Congresso Nacional Africano (ANC) [uma das principais organizações guarda-chuva da luta contra o apartheid na África do Sul] é frequentemente citado, por ignorância, como ponto de referência para aqueles que tentam argumentar que a violência não tem nenhum papel a desempenhar na luta. Mas após a criação de sua ala militar, o MK [uMkhonto we Sizwe, “Lança da Nação”], o ANC nunca renunciou à violência. Nelson Mandela [membro do ANC e cofundador do MK] se recusou a renunciar à violência, mesmo d e p o i s d e décadas na prisão. Em 1985, o presidente do ANC, Oliver Tambo, disse ao Los Angeles Times,

 

“No passado, dissemos que o ANC nunca tiraria deliberadamente a vida de pessoas inocentes, mas hoje, olhando para o que está acontecendo na África do Sul, é difícil dizer que civis não morrerão.

O contexto da luta aqui é o d e uma superpotência nuclear e um povo despossuído. O colonialismo n ã o e s t á enfraquecendo. Ele não recuará por vontade p r ó p r i a , não importa quão gentilmente lhe peçamos. O decolonialismo é uma causa nobre, mas o caminho até ele é muitas vezes feio e marcado p e l a violência. Na ausência de uma alternativa realista para alcançar a libertação, as pessoas são forçadas a cometer atos injustificáveis. Essa é a realidade fundamental da disparidade de poder. E x i g i r que os oprimidos sempre ajam da maneira mais pura é pedir que permaneçam para sempre na escravidão.

Um manifestante evacuando uma criança ferida por fogo israelense durante uma manifestação em Beita. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills.

 

O processo judicial

 

Vamos dar um passo atrás – Jonathan, você está no meio de um julgamento em um tribunal administrado pelo governo israelense, acusado de atirar pedras durante uma manifestação na Cisjordânia. Você pode nos explicar o contexto em que foi preso?

 

Fui preso em Beita, um vilarejo próximo à cidade de Nablus, na Cisjordânia.

 

Beita tem uma longa tradição de resistência ao colonialismo israelense. Foi um dos centros de resistência durante a Primeira Intifada (1987-1993). No início de 1988, cerca de vinte homens de Beita e d a cidade vizinha de Huwara foram cercados pelo exército israelense depois de terem sido identificados pelo Shin B e t , a notória polícia secreta de Israel, como envolvidos em arremesso de pedras. Eles f o r a m amarrados com serflex e, em seguida, os soldados quebraram seus ossos com pedras e cassetetes. Os soldados estavam cumprindo u m a ordem direta do e n t ã o Ministro da Defesa, Yitzhak Rabin, que havia pedido publicamente uma política de “quebrar braços e pernas”.

 

Mais tarde naquele ano, Beita foi palco de um dos incidentes mais significativos d a intifada, quando um grupo de jovens colonos israelenses, liderados pelo extremista Romam Aldube, invadiu a cidade sob o pretexto d e sair p a r a uma excursão de Páscoa. Depois que Aldube matou a tiros um morador da vila nos olivais ao redor da cidade, o grupo continuou dentro da própria Beita, onde foi recebido por moradores que saíram para se defender. Os colonos acabaram sendo desarmados pelos moradores, mas não antes de seus disparos matarem mais dois palestinos e uma menina de 13 anos, que foi morta por engano pelo próprio Aldube durante o confronto.

 

Após esse incidente, houve vários apelos na sociedade israelense para “v a r r e r Beita do mapa”. Em retaliação, e embora os detalhes do incidente já tenham sido esclarecidos para o militar por meio de vários interrogatórios operacionais, o exército israelense destruiu quinze casas na aldeia e prendeu todos os homens, depois deportou seis deles para a Jordânia.

 

Nos últimos anos, Beita tem sido marcada por conflitos constantes com o exército israelense e colonos que buscam estabelecer assentamentos em terras roubadas pertencentes à cidade. A manifestação n a qual fui preso em 27 de janeiro fez parte d e uma revolta local que começou em maio de 2021, após o estabelecimento d e um assentamento israelense na área de Jabel (Monte) Sabih, nos arredores da cidade. Durante essas manifestações, dez pessoas foram mortas por fogo israelense, algumas por tiros de francoatiradores. Milhares de pessoas ficaram gravemente feridas e centenas foram presas. A revolta conseguiu forçar a evacuação dos colonos, mas apenas temporariamente e com a promessa do governo de que eles poderiam voltar mais tarde. Depois que os c o l o n o s saíram, a área foi usada como base militar e, recentemente, os colonos voltaram a ocupar as casas construídas com a ajuda do governo.

 

Fui preso quando a polícia de fronteira (uma unidade paramilitar da polícia israelense) invadiu o vilarejo após uma manifestação. Na delegacia de polícia, ouvi dois dos policiais que me prenderam prepararem seus depoimentos juntos; eles então me acusaram de agressão agravada contra policiais (jogando pedras), obstrução de policiais e tumulto. F u i mantido na prisão por três semanas e depois colocado em prisão domiciliar devido à deterioração da m i n h a saúde. 

Famílias de palestinos detidos esperam para entrar n a prisão/tribunal militar de Ofer, perto de Ramallah. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills

 

Você pediu para ser julgado por um tribunal militar em vez de um tribunal civil, como os palestinos são. Pode explicar o significado dessa solicitação?

Obviamente, não sou admirador d o Estado, deste ou de qualquer outro. Mas nas chamadas democracias, a noção de violência legítima do Estado – que é o próprio fundamento dos sistemas legais e repressivos – decorre d e uma falsa ética de justiça e de uma ideia equivocada de que esses sistemas representam os interesses coletivos daqueles que estão sujeitos à sua autoridade.

 

Há um mecanismo único n o apartheid israelense, que nem sequer existia no sistema de apartheid sulafricano. Na Cisjordânia, há dois sistemas judiciais paralelos: um p a r a o s palestinos e outro para os colonos judeus. Se eu for acusado dos mesmos delitos – mesmo que ocorram no mesmo local, no mesmo horário e nas mesmas circunstâncias – serei processado e julgado com base na lei penal civil, enquanto meus companheiros palestinos serão julgados por um tribunal militar, o que mostra claramente a realidade d e uma ditadura militar total. Para prender os palestinos, o governo usa as forças armadas, que muitas vezes os prendem no meio da noite, de forma violenta e com armas em punho. Pode levar até 96 horas para ver um juiz (24 horas para mim), e mesmo quando isso finalmente a c o n t e c e , o juiz será um soldado de uniforme, assim como o promotor. Eles serão julgados de acordo com a lei militar draconiana de Israel, provavelmente sem fiança, e sentenciados após a condenação em um sistema em que menos de uma em cada 400 pessoas é absolvida.

 

Esse sistema judicial duplo é frequentemente mencionado como um dos principais componentes d o apartheid israelense. É uma manifestação tão evidente do apartheid que até mesmo alguns sionistas moderados não conseguem ignorá-la. No entanto, eles não reconhecem que esse é um elemento fundamental do sionismo como um movimento de colonização, porque se concentram apenas na ocupação de 1967 e no controle de Israel sobre a Cisjordânia e Gaza. Costuma-se dizer que o sistema é ruim, mas que não é racista porque a distinção é feita com base na cidadania. Essa afirmação é falsa. Há uma minoria palestina (20% da população israelense) c u j o s membros vivem nas áreas ocupadas por Israel em 1948 e têm cidadania israelense.

(ao contrário dos palestinos que vivem na Cisjordânia ou na Faixa de Gaza, que vivem s o b controle israelense como súditos sem cidadania). Não é de conhecimento geral, mas mesmo os palestinos com cidadania às vezes são julgados por tribunais militares na Cisjordânia. A verdade é simples: fui acusado perante um tribunal civil porque o Estado me considera judeu. Se e u fosse um palestino com cidadania israelense, provavelmente teria sido julgado por um tribunal militar. O sistema funciona de acordo com critérios étnicos e religiosos.

 

As leis em si são diferentes, e a lei militar não é de fato uma legislação, mas sim um conjunto de decretos emitidos pelo comando militar da região. Um desses decretos, a Ordem 101, por exemplo, proíbe qualquer reunião de natureza política com dez ou mais pessoas (por exemplo, uma refeição em que se discute política), mesmo que a reunião ocorra em propriedade privada.

 

Esse é um delito punível com dez anos de prisão. Da mesma forma, qualquer organização ou associação política pode ser declarada fora da lei, o que acontece regularmente.

 

Vejo o anarquismo como uma ideologia – ou melhor, um movimento – de luta. Acredito que o ativismo em geral não deve ser presunçoso (ou seja, autoindulgente e paternalista), mas sim direcionado a mudanças efetivas. Por si só, não há nada de positivo em perder tempo na prisão em vez de tentar fazer algo útil do lado de fora. Pedi para ser julgado por um tribunal militar a fim de destacar um sistema que poucos c o n h e c e m e, ao mesmo tempo, tentar enfraquecê-lo.

 

Portanto, apresentamos um argumento jurídico bastante sólido, considerando os limites da lei israelense, mas o tribunal simplesmente o ignorou com base e m um ponto técnico inventado do nada – uma bricolagem jurídica impressionante. Minha decisão de me recusar a reconhecer a legitimidade do tribunal d e p o i s q u e meu pedido foi rejeitado também fazia parte da minha estratégia.

Há também um motivo mais fundamental pelo qual me recuso a cooperar com o tribunal e a cumprir os procedimentos, que decorre de minha compreensão do poder e de minha própria experiência com os sistemas judiciário e prisional. Esses sistemas são projetados de tal forma que você e s t á sempre pleiteando ou esperando, sempre à mercê do poder, desprovido de qualquer agentividade.

 

A não cooperação reverte todo esse sistema de controle. Ela permite que você recupere o poder e a agentividade em uma situação em que supostamente não teria nenhum. Certamente há um preço a pagar, e ele deve ser considerado a cada vez, dependendo das circunstâncias. Não defendo essa estratégia assim que você se depara com o sistema jurídico, mas descobri q u e ela tem o mérito de me d e v o l v e r muito controle sobre a situação.

 

Para começar, minhas chances de ser absolvido ou evitar a prisão eram inexistentes e, de qualquer forma, eu não tinha muito a perder.

 

Vista externa d o tribunal militar de Ofer. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills.

 

Essa não é a primeira vez que você enfrenta uma sentença de prisão, não é?

 

Não… Acho que esta pode ser a sexta vez, mas não tenho cem por cento de certeza. Por outro lado, meus companheiros palestinos entram e saem da prisão o tempo todo, e é muito difícil para eles entrar e sair. 

Não é possível imaginar uma vida sem a ameaça de prisão, dadas as circunstâncias em q u e vivemos. De fato, tenho sorte (ou privilégio) de ter passado tão pouco tempo na prisão durante vinte e poucos anos de ativismo. Essa também é uma das consequências d o apartheid israelense.

 

Você mencionou que foi libertado no início deste ano devido a problemas de saúde. Pode nos falar sobre as condições nos vários estabelecimentos onde esteve preso?

 

Assim como o sistema judiciário, a prisão também é segregada. Há diferentes alas e prisões para prisioneiros políticos palestinos (Israel os chama de “prisioneiros de segurança” ) e para todos os outros. As condições são muito mais difíceis para os presos políticos, que têm menos visitas e não têm acesso a telefones, entre outras restrições. Entretanto, a organização, a solidariedade e, às vezes, até a resistência também são mais fortes. Apesar de e u estar sendo processado por acusações políticas pelas quais os palestinos são classificados como “prisioneiros de segurança”, e apesar de ter pedido para ser detido com meus companheiros, sempre fui classificado como um prisioneiro “normal”.

 

O sistema israelense tem três níveis distintos d e encarceramento: detenção pré-carga, detenção pós-carga e prisão pós-condenação. A detenção pré-carga é o estágio em que as condições são as piores possíveis e o acesso ao mundo exterior é mais limitado. Nessa fase, as comunicações telefônicas e o acesso a uma televisão ou rádio são proibidos, a s s i m c o m o a compra de suprimentos para a cantina. N ã o são permitidos livros ou materiais de leitura, com exceção da Bíblia ou do Alcorão. Legalmente, você tem direito a uma hora de caminhada por dia, mas é raro conseguir até mesmo alguns minutos. Algumas dessas condições melhoram gradualmente depois que você é acusado ou condenado, dependendo da prisão e da ala em que você está.

 

As condições físicas variam muito. O número de pessoas em uma única cela pode v a r i a r de duas a vinte; já p a s s e i por ambos os extremos. Em geral, prefiro ter o máximo de privacidade p o s s í v e l .

É possível, mas realmente depende de quem são seus companheiros de cela. Ficar preso em uma cela com apenas uma pessoa pode s e r muito difícil, especialmente para alguém como eu, que não é muito bom em puxar conversa.

 

As drogas e a dependência também são um problema, e há muitas delas por aí. Analgésicos, opiáceos, agonistas de opiáceos, o que você quiser. Mas o suprimento nunca é estável, por isso é comum ficar preso em uma cela com várias pessoas que passam por abstinência forçada e se drogam. Sempre há brigas por uma parte do pouco que chega às celas.

 

Tecnicamente, os prisioneiros não fumantes têm o direito d e serem colocados em celas para não fumantes, mas isso é apenas teórico. Na verdade, a única cela para não fumantes em que fiquei preso foi uma c e l a de isolamento. Nem sequer me foi permitida uma cela para não fumantes quando contraí bronquite aguda.

 

Além das brigas, a forma mais comum de violência entre os detentos é o golpe de surin (filtros de cigarro queimados e prensados são muito comuns e fáceis de o b t e r ) e o jato d e água fervente misturada com açúcar.

 

Sou vegano há quase trinta anos. Sofro d e diabetes tipo 1 e intolerância ao glúten (doença celíaca); também tenho epilepsia, pois levei um tiro de gás lacrimogêneo n a cabeça d u r a n t e uma manifestação. Isso faz com que a alimentação seja uma luta constante na prisão, pois dificilmente consigo comer qualquer coisa que tenha sido preparada na cozinha da prisão. Geralmente, leva de uma a duas semanas para que a comida fique disponível, e ainda mais tempo para receber tudo o que preciso e a que tenho direito. Nesse meio tempo, minha dieta consiste principalmente de pepinos e, quando tenho sorte, cenouras.

 

Durante meu último período na prisão, perdi cerca de 12 quilos em três semanas – cerca de 15% da minha massa corporal. Contraí bronquite aguda, o que fez com que o açúcar em meu sangue subisse para níveis potencialmente letal.

 

Tive a sorte de ser colocado em prisão domiciliar sob fiança, principalmente devido ao meu estado de saúde. Essa é uma oportunidade que os palestinos não têm. Essa experiência de encarceramento me fez questionar a maneira como eu deveria lidar com meu caso político e jurídico, e talvez até tenha me quebrado um pouco. Demorei um pouco para me recuperar fisicamente e ainda mais para recobrar o juízo mental e emocionalmente. Tive que tomar decisões sobre como lidar com o caso, mas nenhuma das opções era correta e eu não estava em condições de aceitá-las. No final, percebi que estava diante de uma escolha binária: ou eu tinha que voltar atrás no acordo que havia feito comigo mesmo na adolescência, quando descobri o mundo espelhado do veganarquismo e percebi como o mundo era distorcido e f o d i d o , ou eu tinha que respeitá-lo e… seguir em frente com a vida. Essa é uma escolha muito fácil, não é? No fim das contas, quase não é uma escolha. 

Você está enfrentando a l g u m a outra acusação?

 

Além das acusações que já foram m e n c i o n a d a s , há alguns outros casos pendentes – acusações pelas quais ainda não fui indiciado, mas poderia ser. O mais notável é o de “incitação à violência e ao terrorismo” após um artigo que p u b l i q u e i quando estava preso em 2020, que pedia às pessoas que apoiassem e se juntassem à resistência palestina ao colonialismo israelense.

Manifestantes em Beita usam táticas de “confusão noturna” para assediar os colonos, apontando lasers e luzes para o assentamento, marchando em direção a ele com tochas flamejantes e direcionando a fumaça de pneus em chamas para ele. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills.

 

Você recebe apoio de grupos da sociedade israelense, da Palestina e internacionais? O que as pessoas podem fazer para apoiar você e aqueles que estão se organizando aqui?

Tenho círculos de apoio dentro da comunidade anarquista e entre os palestinos. Acho que a coisa mais útil a fazer no momento é apoiar as campanhas de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) contra Israel. Há m u i t a s delas, são relativamente eficazes e é muito fácil se envolver.

 

Quanto a me apoiar, acho que apoiar a luta dos prisioneiros palestinos em geral é a melhor maneira de me apoiar pessoalmente.

 

Atualmente, há mais de 5.000 palestinos detidos em prisões israelenses. Cerca de um quarto deles são o q u e Israel chama de “detidos administrativos”, que podem ser mantidos indefinidamente, sem acusação ou julgamento, com base em “provas secretas”.

 

Estima-se q u e um em cada cinco palestinos que vivem sob administração israelense tenha sido preso pelo menos uma vez por Israel.

 

A organização que melhor apoia os prisioneiros palestinos é a Addameer Association for the Support of Prisoners and the Defence of Human Rights2 : uma organização não governamental palestina que trabalha para apoiar os prisioneiros palestinos mantidos em prisões israelenses e palestinas. Fundado em 1991 por um grupo de ativistas interessados em direitos h u m a n o s , o centro oferece assistência jurídica gratuita a prisioneiros políticos, defende seus direitos em nível nacional e internacional e trabalha para acabar com a tortura e as violações dos direitos dos prisioneiros por meio de monitoramento, processos judiciais e campanhas de solidariedade.

 

A Addameer é uma das seis principais organizações da sociedade civil palestina que Israel rotulou como organização terrorista sem mais julgamentos em 2021, novamente com base em “provas secretas”.

 

Eles estão fazendo um trabalho crucial em apoio aos prisioneiros políticos palestinos detidos por Israel ou pela Autoridade Palestina, e é essencial apoiá-los.

A Samidoun é uma rede internacional de ativistas que trabalham para criar solidariedade c o m o s prisioneiros palestinos em sua luta pela liberdade. Eles trabalham para aumentar a conscientização e

 

f o r n e c e r recursos sobre os prisioneiros políticos p a l e s t i n o s , suas condições, suas demandas e sua luta pela liberdade para si mesmos, seus companheiros e sua terra. A Samidoun também trabalha p a r a organizar campanhas locais e internacionais para promover mudanças e defender os direitos e as liberdades dos prisioneiros palestinos.

 

Você pode acompanhar meu caso aqui por meio do meu grupo de apoio local. Provavelmente ainda faltarão alguns meses, mas quando eu voltar para a prisão, gostaria muito de receber algumas correspondências. A maneira mais fácil de fazer isso é enviar um e-mail para o mesmo endereço da última vez em que estive atrás das grades support.jonathan@proton.me, e ele será encaminhado para mim. Farei o possível para responder, mesmo que minhas possibilidades sejam bastante limitadas, pois os selos postais são raros. Como sempre, ao escrever para prisioneiros, é importante ter em mente que toda correspondência é monitorada.

 

Histórico

 

Você ajudou a criar o Anarchists Against the Wall, um coletivo que g a n h o u certo reconhecimento internacional no início dos anos 2000. O que aconteceu com esse projeto? E como é o movimento anarquista em Israel atualmente?

 

Não g o s t o muito de dizer que “ajudei a criar” o AAtW, principalmente porque me parece que essa é uma descrição imprecisa de como esse grupo – e, de fato, a maioria dos grupos de ação direta – começou. Não houve um momento específico. No início do milênio, a Segunda Intifada estava em seu auge, e éramos um pequeno grupo de pessoas que se juntava à resistência palestina e p r a t i c a v a a ação direta. Isso cresceu e nos tornamos mas nunca “fundamos” um grupo. Nem mesmo o nome foi realmente uma escolha intencional.

 

C o s t u m á v a m o s enviar comunicados à imprensa com um nome diferente a cada vez. Foi por acaso que o nome foi usado no dia em que o exército disparou munição real contra um de nós. No frenesi da mídia que se seguiu, aproveitamos a nossa notoriedade e mantivemos esse nome.

 

Vinte anos depois, o projeto AAtW não existe mais, mas acho que há lições a serem aprendidas com ele, tanto positivas quanto negativas. Da mesma forma que tudo começou, o AAtW não apenas desapareceu, mas definhou. Os anarquistas vivem na sociedade contra a qual estão lutando e não são imunes aos seus males. A luta contra a dinâmica do poder é sempre difícil, e acho q u e , no final, foi muito difícil não ficar atolado em nossos problemas. E s t a m o s falando de um grupo relativamente pequeno de pessoas cujos laços políticos foram em grande parte forjados p o r afinidade e confiança. Outro ponto importante a ser destacado é que a dissolução do AAtW coincidiu com o declínio da resistência palestina no final da década de 2010.

 

Depois que eu já havia saído, o grupo se desfez devido a discordâncias fundamentais s o b r e questões de violência e não violência. A história d o anarquismo contemporâneo em Israel, publicada pela CrimethInc. em 2013, conta essa parte da h i s t ó r i a muito bem, em minha opinião, embora eu discorde de algumas das outras questões discutidas no texto.

 

Os anarquistas ainda estão envolvidos na resistência ao sionismo e à colonização israelense. De acordo com suas “origens”, o movimento anarquista em Israel também continua muito comprometido com a questão dos direitos dos animais. As pessoas que fazem parte do movimento estão envolvidas n o apoio a refugiados e pessoas sem documentos, e m atividades culturais e contraculturais, n a educação radical e assim por diante. 

Entretanto, embora os anarquistas estejam presentes sempre que surge um ativismo radical, tenho a impressão de que não há um movimento anarquista distinto no momento, talvez devido à falta de uma forte tradição anarquista aqui. Entretanto, embora os anarquistas estejam presentes sempre que surge um ativismo radical, tenho a impressão de que não há um movimento anarquista distinto no momento, talvez devido à falta de uma forte tradição anarquista aqui.

 

Jonathan Pollak preso durante uma manifestação no vilarejo de Nabi Saleh, na Cisjordânia, em 2011. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills.

 

Desse ponto de v i s t a , o que você acha que os Anarquistas Contra o Muro conseguiram? Que lições – ou pelo menos que suposições – você passaria para os anarquistas de outros lugares com base em suas experiências?

 

Acho que, devido a o nível relativamente alto de exposição que o AatW recebeu, as pessoas tendem a fazer com que esse coletivo seja mais do que realmente foi. No início, era pouco mais do que um pequeno grupo de pessoas muito determinadas, na v e r d a d e um grupo de afinidade ampliado. Depois, cresceu um pouco, com algumas dezenas de pessoas formando seu núcleo e talvez mais a l g u m a s centenas gravitando em torno dele esporadicamente.

 

P a r a mim, a característica mais importante d o AAtW foi o abandono de falsas lealdades nacionais e até mesmo de identidades, em favor d e uma mudança de campo para se juntar diretamente à luta palestina contra o colonialismo israelense. Em uma sociedade unida e militarista como a de Israel, esse foi um afastamento considerável das tradições da esquerda. Pode não ter sido muito, mas ainda assim foi extraordinário. Nosso objetivo era reconhecer nossa posição privilegiada e usá-la, virando-a de cabeça para baixo em nosso relacionamento com a resistência palestina. Não chegar como cavaleiros brancos, mas sim como um recurso. Nosso princípio básico era unir-se à luta palestina e seguir as recomendações dos palestinos.

 

Acredito que nos ver como aliados na luta, e não c o m o simpatizantes no contexto da sociedade israelense, foi a maior contribuição da AatW e a que teve o efeito mais duradouro, mesmo fora de seu círculo mais próximo.

 

Por ser um grupo inicialmente pequeno e muito unido, não foi necessário articular muitas questões. Algumas coisas eram muito claras para a maioria das pessoas envolvidas, e m b o r a fossem tabu na política israelense, mesmo nas franjas mais radicais – por exemplo, nossa atitude em relação à violência, nosso lugar na luta ou nossa posição antagônica em relação ao governo israelense.

Israel. Tudo isso se diluiu e, sem dúvida, ficou mais confuso à medida que o grupo c r e s c i a . Na época, o AAtW era a única organização que apoiava diretamente a resistência popular na Cisjordânia, o que significava que, com o passar do tempo, as pessoas que compartilhavam alguns dos princípios básicos, mas não concordavam com a orientação política original, passaram a fazer parte do grupo.

 

Olhando para trás, quando começamos como um grupo de ação direta pequeno e homogêneo, não tínhamos as ferramentas para lidar com o que estava por vir.

 

Tenho certeza de que a solução não está em uma linha política rígida, mas considero que as divergências que surgiram sobre questões como militância ou se deveríamos adotar uma perspectiva israelense ou anti-Israel foram o principal catalisador para minha saída do grupo. Talvez essa seja a lição a ser aprendida, que a boa e velha organização anarquista em grupos de afinidade é a melhor maneira de permitir uma organização em maior escala, mantendo a autonomia e a diversidade e sem forçar um compromisso político sufocante. É claro que não há uma solução rápida, e alguns dos problemas que a AAtW enfrentou depois que saí não tiveram nada a ver com isso, mas acho que ainda é uma lição relevante a ser aprendida.

 

Qual foi o impacto do novo governo na sociedade israelense e palestina como um todo? Como a nova legislação que limita os poderes da Suprema Corte pode afetar a situação, tanto para você pessoalmente quanto para os ativistas e m geral? [Essa pergunta e a resposta a seguir foram escritas antes dos eventos de 7 de outubro].

 

O governo atual é um dos piores e mais perigosos que Israel já conheceu e, ainda assim, o nível é alto. Ele expressa e aplica descaradamente políticas de limpeza étnica. As ameaças que ele representa são muitas, mas a mais importante é, sem dúvida, a que ele mais enfrenta é ao mesmo tempo Israel. Tudo isso se diluiu e, sem dúvida, ficou mais confuso à medida que o grupo crescia . Na época, o AAtW era a única organização que apoiava diretamente a resistência popular na Cisjordânia, o que significava que, com o passar do tempo, as pessoas que compartilhavam alguns dos princípios básicos, mas não concordavam com a orientação política original, passaram a fazer parte do grupo.

 

Olhando para trás, quando começamos como um grupo de ação direta pequeno e homogêneo, não tínhamos as ferramentas para lidar com o que estava por vir.

 

Tenho certeza de que a solução não está em uma linha política rígida, mas considero que as divergências que surgiram sobre questões como militância ou se deveríamos adotar uma perspectiva israelense ou anti-Israel foram o principal catalisador para minha saída do grupo. Talvez essa seja a lição a ser aprendida, que a boa e velha organização anarquista em grupos de afinidade é a melhor maneira de permitir uma organização em maior escala, mantendo a autonomia e a diversidade e sem forçar um compromisso político sufocante. É claro que não há uma solução rápida, e alguns dos problemas que a AAtW enfrentou depois que saí não tiveram nada a ver com isso, mas acho que ainda é uma lição relevante a ser aprendida.

 

Qual foi o impacto do novo governo na sociedade israelense e palestina como um todo? Como a nova legislação que limita os poderes da Suprema Corte pode afetar a situação, tanto para você pessoalmente quanto para os ativistas e m geral? [Essa pergunta e a resposta a seguir foram escritas antes dos eventos de 7 de outubro].

 

O governo atual é um dos piores e mais perigosos que Israel já conheceu e, ainda assim, o nível é alto. Ele expressa e aplica descaradamente políticas de limpeza étnica. As ameaças que ele representa são muitas, mas a mais importante é, sem dúvida, a que ele mais enfrenta é também a menos específica: esse governo é a personificação da corrida precipitada de todos os políticos israelenses para a extrema direita. O principal ponto de discórdia na sociedade israelense, e o que mais atrai a atenção internacional, é o ataque ao judiciário – mas essa é uma discordância quase cosmética, disfarçada de luta pela democracia. Na realidade, trata-se de um conflito interno sobre a melhor forma de administrar e manter a supremacia judaica, que conta com apoio quase total na sociedade israelense, inclusive entre os chamados liberais.

 

As mudanças específicas que a atual coalizão está tentando implementar, s e m d ú v i d a , enfraquecerão os tribunais e certamente os tornarão um pouco menos liberais, mas os tribunais nunca d e f e n d e r a m nossos direitos, muito menos os dos palestinos, e nunca frearam as políticas governamentais. Nem mesmo um pouco. O sistema judiciário de Israel é e sempre foi a pedra angular do colonialismo israelense entre o rio e o mar; ele foi essencial para permitir a implementação das políticas sionistas e fornecer ao sistema em torno delas um manto jurídico adequadamente liberal. Israel depende de sua capacidade de se apresentar e se vender como uma suposta democracia dinâmica. O enfraquecimento do sistema judicial pode ser prejudicial, mas acredito que a perspectiva d e uma vitória do movimento de protesto representa um perigo ainda maior para a luta global contra o colonialismo e o apartheid.

 

O movimento de protesto é dominado por uma amálgama de reservistas militares, ex-funcionários de alto escalão da famosa polícia secreta de Israel, o Shin Bet, economistas liberais e vários outros grupos sionistas e nacionalistas. Alguns elementos mais radicais também estão envolvidos, mas seu papel e influência são mínimos. A bandeira israelense é composta de símbolos judaicos e é um emblema da exclusividade e supremacia judaica, portanto, não é surpresa que ela seja o principal símbolo do movimento de protesto. Esses grupos estão comprometidos com a ideia de que Israel é uma democracia e que a supremacia judaica não contradiz essa ideia. No geral, esse também é o sentimento mais difundido entre as multidões que participam das manifestações. Qualquer vitória do movimento será usado para reforçar a ideia errônea e perigosa de que a democracia israelense triunfou, sugerindo falsamente que a democracia israelense já existiu. 

 

Manifestantes em Beita. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills.

 

Os anarquistas desempenharam algum papel nas manifestações?

A questão da participação em manifestações dividiu os anarquistas locais. Embora muitos se sintam excluídos, alguns se envolveram no “Bloco Radical”, que, como o nome sugere, é uma coalizão informal de radicais que participam das manifestações. Pelo que entendi, eles se veem mais como contra-manifestantes.

 

Embora eu respeite a escolha d e tentar mobilizar a sociedade israelense e os esforços que estão sendo investidos nela, acho q u e é um erro, dadas as circunstâncias atuais. O movimento de protesto é tão amplo – e está tão firmemente enraizado na ideia de que Israel é uma democracia que deve ser salva – que ele irá absorver, cooptar ou eliminar quaisquer tendências divergentes dentro dele. Pelos motivos explicados acima, acredito que o movimento atual talvez seja a maior ameaça à luta contra o colonialismo desde os Acordos de Oslo, e que Israel é capaz d e usá-lo para restabelecer sua posição internacional da mesma forma que os A c o r d o s de Oslo foram usados para se recuperar da Primeira Intifada no início da década de 1990. Naquela ocasião, tudo o q u e aconteceu no final foi o fortalecimento da dominação sobre os palestinos e a intensificação de sua desapropriação.

 

Na década de 1990, a extrema direita israelense, que via os Acordos de Oslo como um compromisso derrotista, opôs-se a eles e foi às ruas em massa. N ó s também nos opusemos aos acordos, pois já naquela época estava claro que eles seriam usados por Israel para sua própria reabilitação, ou pior, para acabar com a revolta palestina. Em nenhum m o m e n t o , porém, pensamos em nos juntar às manifestações maciças da direita para impedir a implementação d o s acordos. Acho que a situação atual é bastante semelhante. Talvez um exemplo mais familiar possa s e r encontrado n a oposição de muitos fascistas e nazistas à globalização. Alguém poderia imaginar s e juntar a eles?

Entretanto, meu desconforto com a ideia de participar de alguma forma de manifestações por uma falsa democracia é mais profundo do que isso. Acho que em uma situação colonial como a Palestina, nosso papel n ã o é, e não deve ser, o de moderados em uma sociedade colonial. Devemos rejeitar essa sociedade, seu ponto de v i s t a , sua política interna. Devemos entender que a disparidade de poder significa que a mudança não pode vir d e dentro da sociedade israelense. Nosso papel é enfraquecê-la, criar rachaduras, semear a divisão e resistir com firmeza. Em tempos de conflito, não devemos tentar forçar nossa entrada na sociedade israelense, mas nos distanciar dela e lutar contra ela.

 

Do l a d o de fora, toda a região parece um barril de pólvora pronto para entrar em combustão. O que seria necessário para que algo positivo acontecesse? O que lhe dá esperança?

 

Prefiro não negociar com esperança, pois, como todo comércio, é u m a demonstração de engano. Cresci no movimento de libertação animal de meados e final da década de 1990, época do primeiro Green Scare. Lembrome de ler uma carta q u e Free (Jeff Luers) enviou de sua cela para um zine, talvez um ou dois anos após sua condenação, que teve u m impacto duradouro sobre mim. Isso foi há muito tempo e não consigo encontrar essa carta, embora a Internet deva disponibilizar até mesmo os documentos mais raros com o clique de um botão. Provavelmente vou responder de forma um pouco exagerada, mas Free, que foi condenado a mais de vinte anos d e p r i s ã o , evocou a rebelião do gueto de Varsóvia para mostrar que a esperança ou a perspectiva de sucesso não é um critério relevante para a luta ou a resistência.

 

Isso me tocou na época, e ainda me toca hoje.

 

O futuro não pode ser previsto. Um bom amigo que esteve envolvido na resistência clandestina ao apartheid na África do Sul me disse que o final da década de 1980 foi o período mais sombrio. [O presidente Pieter Willem] Botha estava no poder, os Estados Unidos ainda apoiavam firmemente a África do Sul branca como u m importante bastião antissoviético e o fim do apartheid ainda estava no horizonte longe d e estar à vista. Em seguida, a URSS entrou em colapso e a situação geopolítica m u d o u radicalmente, quase da noite para o dia. No início, todos pensaram que estava tudo acabado, porque os soviéticos eram os principais apoiadores do ANC. Mas um efeito colateral menos óbvio foi que o governo pró- ocidental do apartheid da África do Sul de repente se viu muito menos importante n o mundo pós-Guerra Fria; o fato d e já haver um forte movimento para tirar proveito d e s s a s mudanças geopolíticas estava por trás da mudança política e da queda (imperfeita) do apartheid.

 

A moral da história é que é preciso se organizar e criar movimentos de resistência mesmo quando tudo parece perdido. Minha visão do anarquismo não é utópica. Em minha opinião, toda vitória, todo sucesso, deve ser imediatamente visto como um fracasso, como uma estrutura de poder a ser c o m b a t i d a e derrubada. Dizem que o ótimo é inimigo do bom, mas isso é apenas p o r q u e nos falta imaginação e o bom nunca é bom o suficiente. A imperfeição é uma constante, mas continuamos lutando, transformando cada vitória em uma derrota e depois em uma luta. 

 

Jonathan Pollak escoltado para uma audiência de prisão preventiva no Tribunal de Magistrados de Jerusalém, com as pernas algemadas. Fotografia de Oren Ziv/ActiveStills.

 

Apêndice: Declaração de Jonathan Pollak após sua condenação

 

Dez manifestantes foram mortos por soldados israelenses no vilarejo de Beita, na Cisjordânia, p e r t o d e Nablus, desde o início dos protestos em maio de 2021. Em 27 de janeiro deste a n o , fui preso por policiais de fronteira israelenses quando voltava para casa de uma manifestação contra o colonialismo israelense e o roubo de terras do vilarejo para a construção de um novo assentamento exclusivo para judeus. Fui então acusado de atirar pedras e agora e s t o u diante deste tribunal para defender meu caso. O caso se baseia apenas no falso testemunho dos três policiais de fronteira que me prenderam. A polícia se recusou a conduzir uma investigação séria além desses depoimentos, mesmo depois que eu relatei explicitamente ter ouvido os três agentes coordenarem seus depoimentos e n t r e s i . Ao contrário da polícia, que não se deu ao trabalho de f a z e r isso, tenho provas que desacreditam os depoimentos dos agentes e mostram que eles estão repletos de mentiras. Em circunstâncias normais, esse seria um julgamento que eu ficaria feliz e m deixar ir até o fim.

 

As circunstâncias, entretanto, estão longe de ser normais. Excepcionalmente, esse caso está ocorrendo depois que o acusado – eu – solicitou que o julgamento não fosse realizado no tribunal criminal israelense, mas sim em um tribunal militar muito mais draconiano, onde os palestinos são julgados por crimes semelhantes. Pedi para ser julgado por um tribunal militar porque é lá que meus companheiros palestinos, que são regularmente presos durante manifestações como aquela após a qual fui preso, são julgados e recebem sentenças pesadas com base em provas frágeis, muitas vezes fabricadas. Como era de se esperar, o promotor público se opôs a esse pedido e o tribunal o rejeitou. O raciocínio pobre (e não totalmente preciso) do promotor público foi que minha casa não ficava na Cisjordânia. No entanto, os colonos israelenses que vivem e trabalham na Cisjordânia também não são, por uma questão de princípio, acusados pelos tribunais militares. Então, onde fica o “local de moradia” deles? O principal argumento do tribunal para rejeitar minha solicitação foi que os crimes pelos quais eu estava sendo processado não eram classificados como crimes de “segurança”.

 

Não sou especialista em direito e não tenho as ferramentas para avaliar a legalidade da decisão do tribunal e, de qualquer forma, não dou muita importância a ela. Mas uma coisa é certa: os palestinos, e não apenas aqueles que vivem diretamente sob a ditadura militar de Israel na Cisjordânia, estão sendo julgados aos milhares em tribunais militares israelenses sob as mesmas a c u s a ç õ e s ou a c u s a ç õ e s semelhantes. Só fui p o u p a d o d e tal destino porque o Estado me considera cidadão e membro da religião judaica dominante. Meu amigo Tareq Barghouth – um palestino que vive em Jerusalém e ex-membro da Ordem dos Advogados de Israel – foi julgado, condenado e sentenciado por um soldado israelense uniformizado em um tribunal militar na Cisjordânia. E n q u a n t o i s s o , Amiram Ben Uliel, morador de um posto colonial israelense na Cisjordânia e assassino da família Dawabsheh, que foi condenado p o r crimes terroristas muito mais graves, foi julgado em um tribunal civil em Jerusalém.

 

Há apenas dois meses, colonos israelenses mataram a tiros Qussai Ma’atan no vilarejo de Burqa, na Cisjordânia. Dois colonos foram presos sob suspeita de assassinato. Ao mesmo t e m p o , moradores de Burqa também foram presos sob suspeita muito menos grave de envolvimento n o s confrontos que se s e g u i r a m à invasão dos colonos em seu vilarejo. Várias audiências foram realizadas n o caso dos colonos. Elas foram realizadas em um tribunal civil israelense, mesmo antes de ocorrer uma única audiência n o caso dos palestinos, que foi julgado por um tribunal militar. A razão para isso é simples: os palestinos só precisam ser levados a um tribunal após um período de 96 horas, quatro vezes o período estipulado pelo Código Penal israelense. 

Essa política discriminatória pode, de fato, ser considerada legal pelos padrões da lei israelense, mas, em sua essência, continua sendo u m a expressão distinta d o regime de apartheid de Israel entre o rio e o mar.

 

Mas a lei não é justiça. O apartheid sul-africano foi protegido por lei em sua época, assim como o colonialismo francês na Argélia, a supremacia branca na Rodésia e inúmeros outros regimes coloniais derrotados que eram manifestamente injustos. A lei, de fato, muitas vezes é projetada para ser o oposto da justiça.

 

A injustiça do status quo é tão óbvia e inegável que até mesmo o ex-chefe do famoso Mossad, Tamir Pardo, foi recentemente forçado a reconhecer que “em um território onde dois povos são julgados sob dois sistemas legais, é u m estado de apartheid”.

 

Este caso, apesar do que uma leitura d a acusação possa sugerir, tem pouco a ver com um tumulto ou com a obstrução e agressão de policiais, mas sim com a repressão e criminalização da resistência ao colonialismo israelense e s e u regime de apartheid. Minha resposta às acusações e aos fatos descritos n a acusação é i r r e l e v a n t e . Como a própria maneira pela qual esta audiência está sendo conduzida é uma expressão d o apartheid israelense, minha cooperação s e r i a complacência. Por mais de vinte anos, dediquei meu tempo à luta contra o regime colonial de Israel e não estou disposto nem sou capaz de cooperar com ele agora, mesmo que minha decisão signifique que serei colocado atrás das grades novamente.

 

Portanto, embora e u não tenha intenção d e admitir algo que não f i z , n ã o questionarei as testemunhas do Estado, não chamarei ninguém para me defender nem testemunharei eu mesmo; não contestarei as supostas provas da acusação nem apresentarei qualquer prova em minha defesa. O colonialismo israelense e seu

 

r e g i m e d e apartheid são ilegítimos em sua própria essência. Este tribunal é ilegítimo. Os procedimentos neste caso, que complementam outros processos em tribunais militares paralelos ilegítimos, cuja razão de ser é a supressão da resistência, são todos ilegítimos. A única resposta razoável a essa acusação, a essa realidade, é a luta pela liberdade e libertação. N e n h u m a voz é mais forte do que a do levante!

1. Anarquistas contra a parede

2. Addameer significa consciência em árabe.

 

Fonte do texto original em francês: https://fr.crimethinc.com/