PANORAMA HISTÓRICO DO ANARQUISMO NA AMAZÔNIA
Acompanhem o surgimento e o desenvolvimento do anarquismo na nossa região ao longo da sua caminhada até os dias atuais. De onde vem o CCLA, como chegamos a construir esse espaço, quais foram as principais etapas desse percurso etc.? Eis algumas respostas a essas perguntas que mereciam que a nossa militância escrevesse algumas linhas.
A chegada da ideologia anarquista na Amazônia segue o mesmo percurso em todo o Brasil, via imigração. Por exemplo, o governo do Pará, a partir da segunda metade do século XIX, tinha uma preocupação em “aumentar” a população da então Província do Grão-Pará, incentivando a vinda de imigrantes europeus, principalmente, portugueses e espanhóis, mas também italianos, franceses, alemães, belgas e suíços. Também vieram norte-americanos, cubanos, argentinos. Assim, em junho de 1875 com a inauguração da colônia Benevides (hoje município da região metropolitana de Belém). Isso tudo motivado por uma crise de abastecimento alimentar na qual a região se encontrava. Boa parte da mão-de-obra disponível (especialmente ligada à agricultura e coleta na floresta) estava orientada para a produção do látex e da borracha (produto muito demandado no final do século XIX), causando uma falta de gêneros alimentícios básicos nas principais cidades. É nesse contexto que o Governo da Província incentivou a entrada de migrantes europeus, mas também muitos trabalhadores nordestinos, em especial cearenses. O objetivo era criar colônias agrícolas, interligadas pela ferrovia Belém – Bragança, que iriam suprir essas necessidades.
Pela cidade de Belém chegavam, passavam, mas também, ficavam uma quantidade expressiva de imigrantes. Registros historiográficos mostram atuação de anarquistas, mesmo que de forma individual, já neste período. Um episódio curioso, talvez poucas pessoas saibam, em maio de 1896, na ilha de Caratateua, em Outeiro, distrito de Belém, na hospedaria onde se abrigava imigrantes, menciona-se um pedido de repatriamento de um imigrante que fazia distribuição de avulsos de propaganda anarquista[1], muito provavelmente, alusivo ao dia da classe trabalhadora (1° de maio) e aos mártires de Chicago.
No início dos anos 1900, com destaque para as duas primeiras décadas, a cidade de Belém e Manaus viram desenvolver um movimento operário de tendência anarquista muito forte. A literatura revolucionária estava em ampla circulação nestas cidades, texto como A Conquista do Pão de Piotr Kropotkin era base de estudos e formação do operariado, mas também livros e textos (principalmente, reproduzidos por ateneus, bibliotecas e jornais operários) de Bakunin, Malatesta, Ferrer y Guardia, Jean Grave, Reclus e toda uma vasta lista de autores que ajudaram a formar um movimento sindicalista no norte do Brasil que até o exato momento é pouco conhecido e estudado, inclusive por nós anarquistas.
Veja que citamos apenas nomes de homens, no entanto, não descartamos a possibilidade de autoras e militantes como Emma Goldman, Louise Michel, Lucy Parsons, Maria Lacerda de Moura, Maria Antônia Soares e as suas irmãs, Espertirina Martins entre outras tantas mulheres anarquistas (inclusive daqui da região) que provavelmente seus textos e ideias devem ter passado por aqui, por essas terras do trópico úmido também. Cabe a nós fazermos esse resgate. Como a repressão não era apenas nos corpos, mas também ideológica, todo tipo de material, panfletos, livros e jornais se perderam ao longo do tempo.
Por exemplo, entre abril e maio de 1914 ocorreu uma grande greve em Belém, onde sapateiros, carroceiros, estivadores entre outros ofícios, se uniram em luta para reivindicar melhores condições de trabalho e de vida, a repressão estatal-policial, para não fugir à regra, foi pesada, com prisões e apreensões. Cita-se a prisão de Antônio da Costa Carvalho, quitandeiro anarquista, de origem portuguesa[2] em cuja quitanda foi encontrado muito material anarquista. Onde estão esses materiais?
Por conseguinte, na década de 30, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e, posteriormente, o chamado Estado Novo (ditadura Varguista), em 1937, muitas pautas da classe trabalhadora foram atendidas e incorporadas à lógica do Estado, se institucionalizando uma boa parte das políticas legítimas reivindicadas pela nossa classe nesse período. Daí resultou, em nossa avaliação, um erro histórico dos e das anarquistas, naquele momento, foi o seu descolamento do chão de luta. O sindicalismo revolucionário e o anarcossindicalismo foram perdendo forças e inserção social no seio da classe trabalhadora no Brasil inteiro, e na Amazônia não foi diferente. Ao atender as bandeiras e pautas do movimento sindical também se institucionalizaram os sindicatos, através de uma regulamentação junto ao Ministério do Trabalho. Boa parte de nosso campo anarquista era contra atuar em sindicatos que estavam mediados pelo Estado burguês na lógica do conflito de classes naquele momento. O que levou a um gradativo isolamento de nossa corrente e ao fato de que foram-se abrindo espaços tomados ora pela própria direita ora pela esquerda institucional. Como consequência o centralismo democrático ganhou força, viu a construção do Partido Comunista do Brasil (PCB) uma alternativa à classe trabalhadora. Muitos dos próprios anarquistas, influenciados pelo cenário mundial, vendo a experiência da Revolução Russa e do Partido Bolchevique, optaram por essa estratégia reformista.
Mas, como diria Bakunin ‘olhemos sempre para a frente […] se é mesmo útil, necessário nos virarmos para o estudo de nosso passado, é apenas para constatar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais deveremos fazer’[3]. Assim, daremos um salto para os anos de 1980 e 1990 do século XX. Com uma observação importante a fazer: pouco se sabe sobre o anarquismo aqui na Amazônia entre as décadas de 30 e ao final de 70 e início dos anos 80 do século passado. Mais uma tarefa que devemos assumir para contar nossa própria história.
No final da década de 80 até início da década de 90[4] existiu o Movimento de Conscientização Popular (MCP). Foi a partir do MCP que surgiu o Núcleo da Confederação Operária Brasileira (COB) e a Juventude Libertária (JL) aqui em Belém. Estes grupos participaram ativamente das lutas sociais que foram travadas em solo paraense, como exemplo, temos a luta pela meia passagem estudantil nos ônibus da capital. A atuação mais importante foi no Grêmio Estudantil do colégio estadual Souza Franco, local de atuação de Maxwell Ferreira, que foi um grande militante do anarquismo. Uma reivindicação que esses movimentos faziam nesse período e que só depois começaram a figurar nos panfletos da esquerda institucional foi o Passe Livre para estudantes e desempregados. Se atuou muito no apoio às históricas greves dos rodoviários naquela época. Movimentos paredistas cheio de radicalidades e que também foram apoiados por nossos movimentos.
No início dos anos 90, alguns de nós trilharam o caminho universitário e, precisamente, em 1991 fundamos o Coletivo Ovelha Negra para desenvolver uma atuação anarquista na Universidade Federal do Pará (UFPA) lançando inclusive um jornal, o Ovelha Negra. Nossa militância estudantil se desenvolveu inicialmente em alguns centros acadêmicos como pedagogia, geografia, filosofia e economia, mas com o desenvolvimento das atuações na UFPA passamos a buscar intervenção política no Diretório Central dos Estudantes (DCE) a partir de seu processo eleitoral. Organizamos o Movimento RAÍZES. Era um movimento que tinha independentes, anarquistas, militantes de esquerda que não se enquadravam em nenhum partido naquele momento. Um setor interessado na disputa da Reitoria leva esse movimento a processo oportunista e eleitoreiro forçando a nossa saída enquanto corrente organizada. Porém, antes disso, assumimos a Diretoria de Cultura do DCE. Que por sua vez se tornou um coletivo de cultura, organizado horizontalmente que tocou várias atividades no Campus do Guamá da UFPA.
Nesta mesma época, como parte de nossa política, fundamos dois Núcleos Universitários com a perspectiva da extensão social. Necessidade histórica dos militantes libertários para romper com o latifúndio do conhecimento que são as universidades. O primeiro foi o Núcleo Universitário de Apoio para Reforma Agrária (NUARA) e, depois, o Núcleo Universitário de Apoio para Reforma Urbana (NUARU) com objetivo de socializar o conhecimento gerado na universidade a serviço da classe trabalhadora do campo e da cidade. Essas tendências aglutinavam estudantes para a luta, via inserção social nos centros comunitários (NUARU) nos bairros da periferia de Belém, no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e lutas campesinas (NUARA). Construímos projetos para serem executados tanto para periferia como para o campo através da extensão universitária. Era concebido como um tipo de Universidade fora dos muros. A militância que atuava nas tendências acabava entrando em contato com a ideologia anarquista.
Ainda em 1992, nos juntamos à “Na Morada da Arte”, uma ocupação que ficava no centro de Belém, na rua Arcipreste Manoel Teodoro n°837, entre a rua Gama Abreu e a rua Ferreira Cantão, no bairro da Batista Campos. Um espaço que abrigava diversas associações culturais, musicais, artesanato, teatro, poesia, dança, folclore e quadrinistas. Cada associação tinha uma sala para se organizar, planejar e desenvolver projetos de seu interesse. Foi na morada da arte onde fundámos o Centro de Cultura Libertária (CCL). O CCL funcionou de forma mais organizada até o final da década de 90 e início dos anos 2000. Durante o seu funcionamento desenvolvemos muitas atividades que propiciou o encontro de anarquistas e simpatizantes da ideologia, de várias partes do Brasil e do mundo.
Logo o CCL viria a se tornar um espaço de referência do anarquismo, basicamente articulando e formando companheiros e companheiras de luta, dando condições para, em 1998, realizar o congresso fundacional da Organização Socialismo Libertário (OSL) aqui na capital paraense, uma organização nacional de orientação especifista. Nesse período de organização e luta, em 1999, demos o início a Resistência Popular Amazônica (RPA) outra tendência composta por duas frentes de luta: comunitária e educação. Tanto a OSL quanto a RPA tiveram uma breve atuação, deixando de existir por volta de 2000/2001. Apesar do início dos anos 2000 terem sido muito movimentados, exemplo das campanhas contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), também foi um momento de refluxo da militância anarquista organizada. Nesse período surgiu o Fórum do Anarquismo Organizado (FAO) em várias cidades do Brasil. Em maio de 2005 ocorreu uma edição do FAO em Belém, na Universidade Federal Rural da Amazonia (UFRA) com três dias de debates e reflexões sobre nossa corrente. Foi uma tentativa de reorganizar a militância anarquista em Belém, sem sucesso.
No final de 2012, em uma conjuntura de luta contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte no Xingu, muitos setores se articularam como as greves históricas nos canteiros de obra de Belo Monte, bem como, o novo momento das lutas indígenas na Amazonia. Soma-se a esse momento as lutas espalhadas pelo Brasil contra as obras vinculadas os grandes eventos como a Copa e as olimpíadas. Além disso, a juventude, nas principais cidades, retomando a reivindicação do Passe Livre, impulsionou a rearticulação da militância anarquista. Iniciamos uma série de formações com debates e reflexões, pegando textos clássicos do nosso campo ideológico, associado ao cenário das lutas sociais daquele momento, sentimos a necessidade de reativar a organização política anarquista em torno da Biblioteca Libertária Maxwell Ferreira (BLMF), nome em homenagem ao companheiro Maxwell Ferreira. A BLMF foi fundada em 1° de maio de 2013, funcionava na Kasa Utopia, um espaço anarco-punk que era localizado na rua Frutuoso Guimarães, no bairro da Campina. O mote principal da biblioteca era a formação de novos companheiros e companheiras para impulsionar a refundação da organização política anarquista e reorganizar nossa inserção social. Após às manifestações de junho de 2013 (jornadas de junho), em 30 de novembro realizamos o ato de fundação do Núcleo Anarquista Resistência Cabana, onde iniciamos uma articulação com a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)[5]. A efervescência desse momento foi propícia para iniciar um trabalho militante no Movimento Passe Livre (MPL) que lutava pela redução das passagens nos transportes coletivos em várias cidades do Brasil.
A partir de 2014, iniciamos um processo de inserção no bairro da Pratinha, periferia de Belém, em um espaço comunitário denominado de Instituto Bianca e Adrielle em homenagem/lembrança a duas irmãs que foram brutalmente assassinadas. Esse espaço era administrado por um casal de lutadores populares que viram em nossa atuação uma oportunidade de somar na luta das demandas da comunidade. Formação política, educação popular, mutirão, economia coletiva são exemplos de algumas atividades que realizávamos na Pratinha. O Instituto Bianca e Adrielle necessitava de melhorias em sua estrutura física, bem como organizacional, para dar conta das demandas que começavam a crescer.
Nesse momento propusemos a criação do Movimento de Organização de Base (MOB), vendo a experiência desenvolvida em outras cidades do Brasil, debatemos com a comunidade a possibilidade de construir o MOB em Belém, mostrando que nossa luta está associada ao cenário de lutas populares desde o nível local ao nacional. Foi nesse mesmo momento que surgiu a proposta de reformar o barracão do instituto e a criação de uma escola comunitária. Foram várias campanhas de arrecadação financeira executadas pelo MOB com esse intuito (de festas, rifas e doações voluntárias, até um ponto de venda de roupas usadas ‘brechó’ na feira do bairro nós tínhamos para levantar recursos), o trabalho do MOB estava focado em cumprir essas metas.
Em 2017, iniciamos a construção da escola, como nossos recursos eram poucos e a mão-de-obra era voluntária, tivemos uma série de dificuldades gerando altos e baixos nessa empreitada. Após muito trabalho e esforço coletivo, em 2021, conseguimos terminar a construção, foi um momento de alegria, no entanto, ainda vivíamos a pandemia e no meio dessa jornada nossa atuação na Pratinha foi prejudicada, muitas dificuldades se apresentaram para nós, inclusive problemas internos, disputa pelo espaço que construímos por setores neopentecostais e a repressão da própria milicia, minaram o projeto que vínhamos desenvolvendo. O barracão nunca foi reformado. Nossa atuação se encerrou em 2021.
No final do ano de 2022 abrimos as portas em novo endereço e de forma definitiva, resultado do compromisso militante de anos, fruto de muita luta. Hoje temos um espaço próprio com muito orgulho, onde temos como objetivos torná-lo um espaço de referência para o anarquismo organizado, bem como para todas as lutas dos/das de baixo.
[1] Marcos Antonio de Carvalho em A Hospedaria de Imigrantes do Outeiro em Belém do Pará: Um mosaico em construção.
[2] Edilza Joana Oliveira Fontes em “Preferem-se portuguê(as)”: trabalho, cultura e movimento social em Belém do Pará (1885-1914).
[3] Deus e o Estado – Mikhail Bakunin.
[4] Temos alguns materiais impressos dessa época em nossa biblioteca. Alguns deles estão digitalizados. Ver em https://cclamazonia.noblogs.org/historia-e-memorias-do-movimento-libertario-paraense/
[5] A Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) é um espaço organizativo fundado em 2012 que articula nacionalmente organizações e grupos anarquistas que trabalham com base nos princípios e na estratégia do anarquismo de matriz especifista.
Nota: Podem encontrar este material junto com documentos de época (anos 80 em diante) nessa página.