Backgroound Image

Emma Goldman e a Anatomia da Opressão: Anarquia, Sexualidade e a Crítica Radical ao Casamento Burguês (1896)

O mini-ensaio “Anarquia e a Questão Sexual”, escrito por Emma Goldman em 1896, é um dos textos mais incisivos da tradição anarquista sobre a relação entre sexualidade, economia e poder. Longe de tratar o casamento como uma instituição privada ou moral, Goldman o analisa como um dispositivo social profundamente enraizado na desigualdade econômica e na dominação patriarcal. Sua crítica, ainda que situada no final do século XIX, permanece desconcertantemente atual — e talvez por isso continue a incomodar, inspirar e provocar.

Este artigo busca explorar os principais eixos do texto, contextualizando-os historicamente e destacando sua relevância para debates contemporâneos sobre gênero, trabalho, autonomia e libertação social.

O CCLA produziu há pouco um vídeo de leitura desse texto e aqui pode ser assistido:

 

O casamento como engrenagem da economia capitalista

Goldman inicia seu ensaio desmontando a imagem romântica do casamento. Para ela, a união conjugal, tal como estruturada pela sociedade burguesa, é antes de tudo um contrato econômico. O trabalhador pobre, exaurido pela exploração, casa-se não por amor, mas por necessidade: precisa de uma governanta, de alguém que administre a escassez, que estique o salário miserável até onde for possível. A esposa, por sua vez, entra na união como quem entra em um pacto de sobrevivência — e rapidamente se vê transformada em trabalhadora não remunerada, presa a uma rotina de desgaste físico e emocional.

Goldman descreve com precisão quase sociológica o processo de deterioração dessa relação: a pobreza corrói o afeto, a exaustão destrói a paciência, e a falta de perspectivas transforma a casa em um espaço de tensão permanente. Não há romantização possível quando a vida é marcada pela fome, pela precariedade e pela ausência de autonomia.

O casamento, nesse contexto, não é um refúgio, mas uma extensão da fábrica — um espaço onde a mulher continua a ser explorada, agora sob o manto da moralidade e da “respeitabilidade”.

A hipocrisia moral da sociedade burguesa

Um dos pontos mais contundentes do texto é a crítica à hipocrisia das classes ricas. Enquanto o trabalhador se refugia no bar para afogar sua miséria, o burguês encontra no clube, nos teatros e nos bailes uma infinidade de prazeres financiados pelo trabalho alheio. Goldman contrasta esses dois mundos com imagens fortes: de um lado, palácios luxuosos, jantares extravagantes e viagens pelo globo; de outro, porões úmidos, crianças famintas e vidas marcadas pela privação.

Essa oposição não é apenas estética. Ela revela a estrutura de um sistema que produz simultaneamente o luxo e a miséria, a abundância e a fome, a “virtude” burguesa e a “degeneração” dos pobres. A prostituição — tema central do ensaio — não é, para Goldman, um desvio moral, mas uma consequência direta dessa desigualdade estrutural.

A sociedade que condena a prostituta é a mesma que empurra milhares de mulheres para a prostituição, seja ela legal (o casamento sem amor) ou ilegal (a venda direta do corpo). A diferença entre ambas é apenas o verniz moral que a Igreja e o Estado aplicam sobre a primeira.

Prostituição legal e ilegal: duas faces da mesma moeda

Goldman formula uma das críticas mais radicais de sua época — e talvez ainda da nossa: toda união sem amor é prostituição. A frase, que escandalizou moralistas e reformadores, não é um exagero retórico. Ela expressa a convicção de que a coerção econômica transforma o casamento em uma transação desigual, onde a mulher troca sua autonomia, sua sexualidade e sua força de trabalho por segurança material.

A prostituta “ilegal”, diz Goldman, ao menos possui a liberdade de deixar o homem que a compra. A esposa “respeitável”, ao contrário, está presa por leis, convenções sociais e pelo medo do escândalo. A sociedade burguesa, portanto, não combate a prostituição: ela a institucionaliza.

Essa análise antecipa debates contemporâneos sobre trabalho reprodutivo, divisão sexual do trabalho e autonomia feminina. Goldman percebe, muito antes de autoras feministas do século XX, que a opressão das mulheres está profundamente ligada à estrutura econômica da sociedade.

O Estado, a Igreja e a fabricação da submissão

Para Goldman, o casamento não é apenas uma instituição econômica, mas também um instrumento político. O Estado e a Igreja atuam como guardiões da moralidade burguesa, garantindo que a família — célula básica da ordem social — continue a reproduzir hierarquias e desigualdades.

A lei do divórcio, por exemplo, é apresentada como uma armadilha: para se libertar, a mulher deve expor sua vida íntima ao escrutínio público, arriscando sua reputação e seu futuro. A Igreja, por sua vez, reforça a ideia de que o casamento é sagrado, imutável e natural — uma estratégia eficaz para manter mulheres e homens presos a papéis sociais rígidos.

Goldman denuncia essa aliança entre Estado, Igreja e capitalismo como um sistema de controle total, que regula corpos, desejos e relações humanas.

A visão anarquista de liberdade sexual

A crítica de Goldman não é destrutiva; ela aponta para um horizonte de emancipação. Em uma sociedade verdadeiramente livre — sem propriedade privada, sem exploração e sem instituições coercitivas — as relações humanas seriam baseadas no afeto, na solidariedade e na autonomia.

O casamento, tal como o conhecemos, deixaria de existir. Em seu lugar, haveria uniões livres, sustentadas pelo amor e pela afinidade, e não pela necessidade econômica ou pela pressão social. A separação, quando necessária, seria tranquila e digna, sem escândalos ou punições.

Essa visão antecipa debates sobre amor livre, autonomia sexual e relações não hierárquicas que só ganhariam força décadas depois.

A atualidade desconcertante de Emma Goldman

Mais de um século após sua publicação, o texto de Goldman continua a ecoar questões urgentes:

  • A precarização do trabalho e seu impacto nas relações afetivas
  • A sobrecarga doméstica das mulheres
  • A persistência da violência econômica e simbólica no casamento
  • A moralização da sexualidade feminina
  • A desigualdade estrutural que empurra mulheres para formas diversas de exploração

Goldman não oferece respostas fáceis. Ela nos convida a olhar para a raiz dos problemas — não para seus sintomas. Sua crítica é um chamado à ação, à reflexão e à construção de novas formas de viver e se relacionar.

Por que ler Emma Goldman hoje

“Anarquia e a Questão Sexual” é mais do que um texto histórico. É um espelho incômodo que revela como as estruturas de opressão se reinventam, mesmo quando acreditamos tê-las superado. Goldman nos lembra que não há emancipação possível sem transformar radicalmente as bases econômicas e políticas da sociedade.

Para o CCLA, revisitar esse texto é reafirmar a importância de uma crítica libertária que articule gênero, classe e poder — e que continue a imaginar, como Goldman, um mundo onde o amor não seja contrato, a vida não seja servidão e a liberdade não seja privilégio.