Entre a memória da Cabanagem e o espetáculo da COP em Belém, a Amazônia continua sendo palco de resistências que não cabem nos discursos oficiais. O CCLA nasce nesse entremeio: reivindicando a insurreição popular como inspiração e denunciando a farsa do capitalismo verde. Nossa ecologia é libertária, feita de solidariedade concreta com povos indígenas, migrantes e comunidades diversas, e não de promessas vazias em palcos internacionais.
A memória insurgente da Cabanagem
A história da Amazônia não pode ser contada sem a lembrança da Cabanagem, insurreição popular que explodiu em 1835 e que marcou profundamente o Pará. Mais do que um episódio isolado, a Cabanagem foi a expressão de uma revolta contra a brutal concentração de riquezas e poder nas mãos de elites coloniais e imperiais, que mantinham a maioria da população amazônica em condições de miséria e subjugação. O levante cabano, ainda que fragmentado e atravessado por contradições, carregava um viés libertário ao reivindicar autonomia popular e desafiar a ordem estabelecida. Ao escolher o 7 de janeiro — data de início da revolta — como marco de sua fundação, o CCLA inscreve-se nessa tradição de resistência, reivindicando a memória cabana como inspiração para uma prática libertária contemporânea. Essa escolha não é mero simbolismo: é a afirmação de que a luta popular, quando enraizada na história, pode iluminar os caminhos da emancipação presente.

A Cabanagem e a COP: duas faces da mesma lógica de dominação
A Cabanagem foi marcada pela revolta contra a concentração de riquezas e pela recusa em aceitar que a Amazônia fosse apenas território de exploração. Hoje, quase dois séculos depois, a COP30 em Belém expõe outra forma dessa mesma lógica: a gestão capitalista da catástrofe climática. Em vez de enfrentar as causas estruturais da destruição ambiental — o extrativismo, o agronegócio, a mineração — o espetáculo internacional legitima governos e corporações que lucram com a crise. Assim como na Cabanagem, o que está em jogo é a luta dos povos organizados contra a apropriação de seus territórios e vidas. O CCLA, ao se colocar como referência atual nessas frentes de luta ecológica, retoma o fio libertário da insurreição cabana: não aceitar que a Amazônia seja palco de exploração e marketing, mas afirmar que ela é território de resistência, solidariedade e liberdade.

O espetáculo da COP e o “capitalismo verde”
Belém, palco da COP30, tornou-se vitrine de discursos oficiais sobre sustentabilidade e preservação. Mas por trás das promessas e dos palcos internacionais, o que se vê é a continuidade da devastação: avanço do agronegócio, mineração predatória, expulsão de comunidades tradicionais. O “capitalismo verde” transforma a Amazônia em cenário de marketing, enquanto os povos que a habitam seguem sendo marginalizados. Para nós, anarquistas, a COP não é espaço de emancipação, mas de cooptação. É o espetáculo que legitima governos e corporações, enquanto silencia as vozes insurgentes. Denunciar essa farsa é parte essencial da tarefa libertária: mostrar que não há ecologia verdadeira sem ruptura com o Estado e com o capital.

Povo Ka’apor: resistência na floresta
Entre as lutas que o CCLA acompanha, destaca-se a dos Ka’apor, povo indígena que enfrenta diariamente invasões de madeireiros e pressões de grandes projetos. Sua resistência não se dá apenas em discursos, mas em práticas concretas de defesa territorial, de vigilância comunitária e de afirmação cultural. Os Ka’apor mostram que a ecologia não é uma abstração, mas uma prática de sobrevivência e dignidade. Ao lado deles, aprendemos que solidariedade libertária significa apoiar sem tutelar, caminhar junto sem impor agendas. A luta Ka’apor é exemplo vivo de que a Amazônia não precisa de salvadores externos, mas de aliados que reconheçam sua autonomia.

Povo Warao: migração e dignidade
Outro eixo de nossa prática é a solidariedade com os Warao, povo indígena oriundo da Venezuela que, em razão da crise e da perseguição, migrou para o Brasil. Em Belém e em outras cidades amazônicas, os Warao enfrentam condições precárias, discriminação e invisibilidade. O CCLA acompanha suas demandas por moradia, alimentação e respeito cultural, buscando construir pontes de solidariedade. A presença dos Warao nos lembra que a Amazônia é também espaço de migração e de encontro, e que a ecologia libertária deve incluir a luta contra fronteiras e nacionalismos. Apoiar os Warao é afirmar que nenhum ser humano é ilegal, e que a dignidade não pode ser condicionada por documentos ou por políticas de Estado.

Bookchin e a ecologia social
As leituras de Murray Bookchin têm sido fundamentais para nossas reflexões. Sua proposta de ecologia social mostra que a crise ambiental não pode ser separada da crise social: a dominação da natureza é reflexo da dominação entre seres humanos. Inspirados por Bookchin, entendemos que a luta ecológica deve ser também luta contra hierarquias, contra o patriarcado, contra o racismo e contra todas as formas de opressão. A ecologia libertária que buscamos não é apenas preservação de florestas, mas construção de comunidades autônomas, horizontais e solidárias. Ao trazer Bookchin para nossas rodas de leitura e debates, buscamos traduzir sua teoria em prática amazônica, conectando pensamento crítico com ação militante.

Práticas libertárias cotidianas
O CCLA não se limita a denunciar: organiza cineclubes, debates, traduções de textos libertários, ações de solidariedade com povos indígenas e migrantes, e práticas de alimentação vegana em nossas atividades. Essas ações, aparentemente pequenas, são sementes de uma ecologia libertária. Ao cozinhar coletivamente, ao traduzir textos, ao debater filmes, estamos construindo espaços de autonomia e de cultura crítica. A solidariedade com a comunidade LGBTQIA+ e com movimentos populares reforça que nossa luta é interseccional, que não há emancipação parcial. Cada gesto cotidiano é parte de uma resistência maior, que se opõe ao espetáculo da COP e às promessas vazias do Estado.

Belém periférica e vulnerável após a COP
Belém recebeu a COP30 no mês passado, e o saldo para as populações marginalizadas e periferizadas foi de agravamento das dificuldades cotidianas. As obras realizadas para o evento, muitas vezes marcadas por suspeitas de desvio de recursos públicos e pela destruição de áreas verdes urbanas, deixaram cicatrizes profundas no território. Enquanto o centro foi maquiado para o espetáculo internacional, as periferias continuaram expostas ao acúmulo de lixo não tratado, à poluição dos rios e igarapés e ao avanço desordenado de atividades comerciais e industriais. Nessas áreas, a vulnerabilidade às doenças aumentou, os serviços públicos seguiram precários e a promessa de “sustentabilidade” revelou-se uma farsa cruel. A cidade que se vendeu ao mundo como vitrine da preservação ambiental expõe, em suas margens, a contradição mais brutal: a vida das maiorias sacrificada em nome de um espetáculo que já passou, mas cujas consequências permanecem.

Entre memória e horizonte
O artigo que propomos aqui é, portanto, uma ponte: entre a memória da Cabanagem e o horizonte de uma Amazônia libertária. Entre a denúncia do espetáculo verde e a afirmação de práticas concretas de solidariedade. Entre a teoria de Bookchin e a luta dos Ka’apor e dos Warao. Essa ponte não é linear nem fácil, mas é necessária. Ao escrever e publicar, queremos afirmar que a Amazônia não é apenas território de exploração, mas também de resistência e de criação. Queremos mostrar que o anarquismo não é utopia distante, mas prática viva, enraizada em comunidades e em solidariedades reais.

Caminhos abertos da ecologia libertária
Em tempos de discursos oficiais e promessas de sustentabilidade, reafirmamos que a verdadeira ecologia nasce da insurgência. Nasce da memória cabana, da resistência Ka’apor, da dignidade Warao, das leituras de Bookchin e das práticas cotidianas de solidariedade. O CCLA é parte dessa trama, não como protagonista, mas como aliado. Nosso papel é dar visibilidade, construir pontes, fortalecer redes. A Amazônia não precisa de palcos internacionais: precisa de autonomia, de solidariedade e de liberdade. É nesse horizonte que seguimos caminhando, entre memórias e práticas, entre resistências e criações, tecendo uma ecologia libertária que não se encerra aqui, mas que se reinventa a cada encontro e a cada gesto coletivo.
