A polêmica em torno da “Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas” é, provavelmente, o debate mais denso e duradouro sobre organização no interior do anarquismo no século XX.
Ela não é apenas uma divergência entre dois nomes célebres—Errico Malatesta e Nestor Makhno—mas a cristalização de tensões que atravessam, até hoje, qualquer tentativa de construir um movimento anarquista organizado, enraizado nas lutas concretas e, ao mesmo tempo, fiel aos seus princípios libertários.
Este texto parte da leitura atenta dos escritos de Malatesta e Makhno sobre a Plataforma, tal como reunidos em dossiês e compilações históricas, para reconstruir o núcleo do debate e, sobretudo, para mostrar que a oposição entre suas posições não se resolve em favor absoluto de um ou de outro, mas se desloca conforme as condições concretas em que o movimento anarquista se encontra.
Ouçam aqui a leitura dos textos num vídeo realizado pelo CCLA:
1. A Plataforma e o problema da organização anarquista
1.1. O contexto da Plataforma
A “Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas (Projeto)” foi elaborada por um grupo de anarquistas russos no exílio, ligados à experiência da Makhnovitchina na Ucrânia revolucionária e ao jornal Dielo Truda.
Escrita em meados da década de 1920, ela surge como tentativa de responder a uma constatação amarga: apesar da coragem, do sacrifício e da riqueza teórica, o anarquismo não conseguiu intervir de forma decisiva nos rumos da Revolução Russa, nem impedir a consolidação do poder bolchevique.
A Plataforma propõe, em linhas gerais:
- Unidade teórica: um corpo de princípios comuns, que evite dispersão doutrinária excessiva.
- Unidade tática: coordenação das práticas, para que o movimento não atue de forma caótica ou contraditória.
- Responsabilidade coletiva: a organização responde pelos atos de seus membros, e os membros respondem pela organização.
- Um órgão executivo: um comitê encarregado de coordenar, impulsionar e garantir a coerência da ação.
Para seus autores, sem esse tipo de organização, o anarquismo permaneceria fragmentado, incapaz de disputar a direção dos processos revolucionários e condenado a um papel secundário, moralmente admirável, mas politicamente impotente.
1.2. O “maior debate” sobre organização
A recepção da Plataforma foi explosiva. Ela desencadeou um debate que envolveu, além de Malatesta e Makhno, nomes como Volin, Sébastien Faure, Luigi Fabbri, Camillo Berneri, G. P. Maximoff, entre outros.
Compilações recentes identificam esse ciclo de textos como “o maior debate da história do anarquismo acerca da questão organizativa”, tanto no que diz respeito à organização de massas quanto à organização específica anarquista.
De um lado, os defensores da Plataforma insistiam na necessidade de superar o “caos organizativo” e construir um anarquismo organizado, capaz de atuar como força dirigente—não no sentido autoritário, mas como referência ideológica e prática para as massas em luta.
De outro, críticos como Malatesta temiam que a adoção de estruturas centralizadas, com comitês executivos e responsabilidade coletiva rígida, acabasse por reproduzir, em nome do anarquismo, formas de poder incompatíveis com seus princípios.
2. Malatesta: organização, sim—mas sem governo nem igreja
2.1. Organização como cooperação e solidariedade
No texto “Um Projeto de Organização Anarquista” (1927), Malatesta começa por reconhecer algo fundamental: a organização é necessária e, em si mesma, não é contrária ao anarquismo.
Para ele, organização significa, antes de tudo, cooperação e solidariedade na prática, uma condição natural da vida social. Os seres humanos não podem viver isolados; quem não se organiza livremente acaba submetido às organizações criadas por outros, geralmente as classes dominantes.
Daí sua conclusão: o anarquismo nasce justamente como resposta a essa situação, propondo uma organização livre, baseada em acordo voluntário, sem autoridade, sem direito de imposição de uns sobre outros.
Portanto, os anarquistas, se levam a sério seus próprios princípios, devem buscar aplicar essa lógica organizativa em suas próprias práticas.
2.2. O problema não é “organização”, mas o tipo de organização
Malatesta observa que, embora existam anarquistas que parecem rejeitar qualquer forma de organização, na prática, quando querem agir, eles também se organizam—e muitas vezes de forma eficaz.
O que está em jogo, então, não é o princípio da organização, mas os meios organizativos: como organizar, com que estrutura, com que grau de centralização, com que tipo de vínculo entre indivíduo e coletivo.
Ele afirma que uma organização anarquista mais ampla, duradoura e coesa poderia ser um fator importante de força, desde que permaneça em harmonia com os princípios anarquistas: autonomia, livre acordo, responsabilidade individual, ausência de autoridade institucionalizada.
2.3. Crítica à “União Geral” e à responsabilidade coletiva
Ao analisar a proposta da “União Geral dos Anarquistas”, Malatesta identifica dois problemas centrais:
- A pretensão de reunir todos os anarquistas em uma única organização.
Para ele, isso é irrealista e, em certo sentido, indesejável. Existem diferenças de ambiente, de tática, de temperamento, de concepção de luta. Uma única estrutura corre o risco de se tornar um obstáculo à iniciativa individual e um foco de conflitos internos permanentes. - O princípio da responsabilidade coletiva tal como formulado na Plataforma.
A ideia de que “toda a União é responsável pela atividade de cada membro, e cada membro é responsável pela atividade da União” é, para Malatesta, a negação da independência individual e da liberdade de iniciativa.
Se a União é responsável por tudo o que cada membro faz, ela precisa controlar, autorizar, vetar, supervisionar. Isso implica, na prática, um poder diretivo sobre os indivíduos. E se o indivíduo é responsável por tudo o que a União faz, ele se vê comprometido com decisões que não controla e que podem contrariar sua consciência.
2.4. Governo e igreja: o risco da centralização
Malatesta vai mais longe: ao descrever a estrutura proposta—organizações parciais com secretarias que dirigem o trabalho político e técnico, coordenadas por um Comitê Executivo encarregado de garantir a “conduta ideológica e organizacional” conforme a linha geral da União—ele afirma que isso se assemelha a um governo e a uma igreja.
Não há polícia nem baionetas, reconhece ele, mas o espírito é autoritário: há um centro que define a linha, há uma ortodoxia ideológica, há um órgão que supervisiona e corrige.
Mesmo que, na prática, esse “governo” seja frágil, o efeito educativo é anti-anarquista: acostuma os militantes a pensar em termos de direção central, disciplina obrigatória, ortodoxia doutrinária.
2.5. Contra o governo da maioria dentro do anarquismo
Outro ponto crucial da crítica de Malatesta é a rejeição do governo da maioria como princípio organizativo obrigatório. Ele lembra que os anarquistas sempre criticaram a democracia representativa, mostrando como, na prática, o governo da maioria se converte em governo de uma minoria organizada.
Para ele, é aceitável que, em certas situações, a minoria se adapte à maioria por razões práticas, para evitar paralisia. Mas isso deve ser fruto de acordo voluntário, não de um princípio estatutário que obriga todos a se submeterem às decisões da maioria, independentemente de seu conteúdo.
Se os anarquistas negam o direito da maioria de governar a sociedade em geral, pergunta Malatesta, como poderiam aceitar esse princípio como base de suas próprias organizações, que são, por definição, livres e voluntárias?
2.6. A alternativa malatestiana: federalismo libertário e livre acordo
Em oposição ao modelo da Plataforma, Malatesta propõe uma organização fundada em:
- Autonomia total dos indivíduos e grupos.
- Responsabilidade individual, derivada dos compromissos livremente assumidos.
- Acordo voluntário entre aqueles que desejam cooperar em torno de um objetivo comum.
- Estruturas federativas: grupos, federações, federações de federações, comissões de correspondência, congressos—mas sem poder legislativo ou executivo sobre os demais.
Os congressos, nessa perspectiva, não estabelecem leis nem impõem resoluções obrigatórias. Eles servem para:
- Trocar informações.
- Coordenar iniciativas.
- Formular propostas.
- Sistematizar tendências e debates.
As decisões só se tornam vinculantes para aqueles que as aceitam, e apenas enquanto as aceitam. Os comitês não têm autoridade; são instrumentos de facilitação, não de direção.
Malatesta reconhece que esse tipo de organização pode parecer menos “eficiente” do que um modelo centralizado, especialmente em contextos de guerra ou revolução. Mas ele insiste: não se pode sacrificar os princípios anarquistas em nome de uma eficácia que, no limite, reproduziria o destino do socialismo e do comunismo sob o bolchevismo.
3. Makhno: responsabilidade coletiva e direção revolucionária
3.1. A experiência da Makhnovitchina
Nestor Makhno escreve a Malatesta em 1928 a partir de uma experiência muito distinta: a da insurreição camponesa e operária na Ucrânia, que enfrentou simultaneamente o Exército Branco, o Exército Vermelho e as forças nacionalistas, tentando construir formas de autogestão e comunismo libertário em meio à guerra civil.
Para Makhno, a desorganização do movimento anarquista, sua incapacidade de atuar como força coesa, teve consequências trágicas. Enquanto os bolcheviques dispunham de um partido centralizado, com disciplina e estratégia, os anarquistas apareciam como uma constelação dispersa de grupos, muitas vezes incapazes de formular uma linha comum ou de sustentar uma intervenção prolongada.
É nesse contexto que ele valoriza a responsabilidade coletiva e a necessidade de uma organização anarquista com capacidade de direção ideológica e tática.
3.2. Responsabilidade coletiva como princípio revolucionário
Na sua carta a Malatesta, Makhno afirma que a responsabilidade coletiva é um princípio fundamental para qualquer revolucionário sério. Sem ela, diz ele, ninguém teria a força moral e a determinação necessárias para enfrentar a miséria social e lutar contra ela.
Ele reconhece que Malatesta defende a responsabilidade individual do militante anarquista, mas considera insuficiente limitar-se a isso. Para Makhno, é preciso que o movimento, como conjunto, assuma responsabilidade por suas orientações, suas ações e seus efeitos sobre as massas.
A responsabilidade coletiva, nesse sentido, não é apenas um mecanismo disciplinar; é a expressão de um espírito coletivo sólido, capaz de formular diretrizes claras e de sustentar uma linha de ação coerente em momentos decisivos.
3.3. Direção ideológica e tática sem “ditadura”
Makhno insiste que o anarquismo não pode se furtar à tarefa de orientar ideologicamente e praticamente a luta dos trabalhadores contra o capitalismo e o Estado.
Se o anarquismo renuncia a essa função, outros o farão—e, como a história da Revolução Russa mostrou, o resultado pode ser a substituição de uma dominação por outra.
Para ele, falar em “direção” não significa instaurar uma ditadura de partido ou de comitê, mas reconhecer que:
- As massas em luta precisam de propostas claras, não apenas de negações.
- Os anarquistas devem ser capazes de formular programas concretos, estratégias e táticas.
- A organização anarquista deve ter continuidade, não apenas explosões episódicas.
A Plataforma, nesse sentido, é vista por Makhno como um esforço para dotar o anarquismo de uma organização permanente, com unidade de objetivos e de ação, capaz de exercer influência real nos processos revolucionários.
3.4. Crítica à recusa da responsabilidade coletiva
Makhno considera perigosa a recusa de Malatesta em aceitar a responsabilidade coletiva. Para ele, essa recusa contribui para manter o anarquismo em um estado de fragmentação crônica, incapaz de responder às exigências de uma revolução social que precisa enfrentar, de uma só vez, múltiplos inimigos organizados.
Ele pergunta, em essência:
- O anarquismo deve ou não assumir responsabilidade na luta dos trabalhadores?
- Pode o anarquismo, no estado de desorganização atual, exercer influência ideológica e prática significativa?
- Não seriam necessárias organizações permanentes, ligadas por unidade de objetivos e ações, para que o anarquismo possa provar, na prática, seus conceitos construtivos?
Essas perguntas não são meramente retóricas; elas nascem de uma experiência concreta de derrota parcial, de isolamento e de traição por parte de forças supostamente revolucionárias.
4. Dois polos de uma mesma tensão: princípio e eficácia
4.1. Não se trata de “organização vs. anti-organização”
Um ponto importante, que a leitura atenta dos textos deixa claro, é que nem Malatesta nem Makhno são “anti-organização”.
Ambos defendem a necessidade de organização anarquista; ambos reconhecem que o individualismo disperso é incapaz de enfrentar o capitalismo e o Estado.
A divergência está em outro lugar:
- Para Malatesta, o risco maior é que a organização se converta em um poder separado, em um “governo anarquista” ou em uma “igreja” ideológica, minando desde dentro o espírito libertário.
- Para Makhno, o risco maior é que a falta de organização deixe o anarquismo impotente, reduzido a uma bela ideia sem força histórica, incapaz de disputar o rumo da revolução.
Ambos, portanto, partem de preocupações legítimas, mas enfatizam perigos diferentes.
4.2. A questão da maioria, da disciplina e da direção
O debate sobre responsabilidade coletiva, comitês executivos e governo da maioria é, na verdade, um debate sobre:
- Disciplina: ela é autoassumida ou imposta?
- Direção: ela é uma função rotativa, controlada, revogável, ou tende a se cristalizar em liderança permanente?
- Unidade: ela é resultado de convencimento e afinidade, ou de mecanismos formais de decisão que obrigam todos a seguir a linha da maioria?
Malatesta teme que a formalização da responsabilidade coletiva e a criação de um órgão executivo com função diretiva abram caminho para uma forma de parlamentarismo interno, em que congressos e comitês passem a decidir em nome de todos, mesmo quando representam apenas uma maioria relativa, pouco representativa.
Makhno, por sua vez, teme que a recusa de qualquer forma de direção organizada deixe o campo livre para que outras forças—mais disciplinadas, mais centralizadas—ocupem o espaço e imponham sua hegemonia sobre as massas.
4.3. A experiência histórica como pano de fundo
É impossível separar essas posições de seus contextos:
- Malatesta escreve em um momento em que o bolchevismo já havia mostrado sua face autoritária, com repressão a anarquistas, socialistas dissidentes e movimentos autônomos. A crítica à centralização não é abstrata; ela é alimentada pela experiência concreta da degeneração de uma revolução em ditadura de partido.
- Makhno escreve a partir da experiência da guerra civil ucraniana, em que a falta de uma organização anarquista internacional forte e coesa contribuiu para o isolamento da Makhnovitchina e para sua derrota frente a inimigos muito mais organizados e disciplinados.
Essas experiências moldam o olhar de cada um sobre o que é mais perigoso: o excesso de organização ou a sua falta.
5. Atualidade do debate: plataforma, síntese e além
5.1. Plataformismo, síntese e outras respostas
O debate em torno da Plataforma não se encerrou com Malatesta e Makhno. Ele deu origem a correntes e formulações posteriores, como:
- O plataformismo, que retoma e desenvolve a ideia de uma organização anarquista específica, com unidade teórica e tática, inserida nos movimentos de massa.
- A síntese anarquista, formulada por Sébastien Faure e Volin, que propõe uma organização capaz de integrar diferentes tendências anarquistas (comunistas, sindicalistas, individualistas), sem exigir unidade doutrinária rígida.
Essas respostas mostram que o problema colocado pela Plataforma—como articular princípios libertários e eficácia organizativa—não tem solução única. Ele se desdobra em diferentes modelos, cada um tentando equilibrar, à sua maneira, autonomia e coordenação, diversidade e unidade.
5.2. Movimentos contemporâneos e a questão da organização
No século XXI, a questão reaparece em novos contextos:
- Movimentos horizontais, assembleários, redes de afinidade, que valorizam a autonomia e rejeitam lideranças formais.
- Organizações anarquistas específicas, que buscam atuar de forma coordenada em sindicatos, movimentos comunitários, lutas territoriais.
- Experiências de autogestão em territórios em conflito, onde a necessidade de defesa e coordenação militar recoloca, de forma aguda, o problema da disciplina e da direção.
Nesses cenários, as perguntas de Malatesta e Makhno continuam ecoando:
- Como evitar que a organização se converta em poder separado?
- Como evitar que a recusa de organização condene o anarquismo à irrelevância prática?
- Como construir formas de responsabilidade que sejam, ao mesmo tempo, coletivas e libertárias, sem cair nem no individualismo impotente nem na disciplina autoritária?
6. Entre Malatesta e Makhno: o peso das condições concretas
Ao fim de uma leitura cuidadosa dos textos de Malatesta e Makhno sobre a Plataforma, uma coisa se torna evidente: não há um veredito absoluto que possa declarar um deles “certo” e o outro “errado” em termos universais.
Ambos apontam para perigos reais:
- Malatesta alerta contra a burocratização, a centralização e a transformação da organização em governo.
- Makhno alerta contra a desorganização, a dispersão e a incapacidade de influenciar os rumos da luta de classes.
Ambos defendem, cada um à sua maneira, que o anarquismo precisa ser força viva, não apenas crítica moral; mas discordam sobre o quanto se pode “esticar” os princípios libertários em nome da eficácia.
Quando se observa a história concreta dos movimentos anarquistas—suas vitórias parciais, suas derrotas, suas sobrevivências subterrâneas—fica difícil sustentar que uma única resposta organizativa sirva para todos os tempos e lugares.
Em contextos de relativa abertura, onde há espaço para experimentação, talvez a ênfase malatestiana na autonomia, no federalismo e no livre acordo seja mais adequada para evitar cristalizações autoritárias.
Em contextos de guerra civil, repressão extrema ou revolução aberta, a insistência de Makhno na responsabilidade coletiva, na unidade estratégica e na continuidade organizativa pode se mostrar decisiva para que o anarquismo não seja apenas uma nota de rodapé heroica.
O que o debate entre Malatesta e Makhno nos oferece, então, não é um manual pronto, mas um campo de tensões que precisa ser reaberto a cada nova conjuntura.
Entre o medo de organizar demais e o medo de organizar de menos, o movimento anarquista se vê obrigado a pensar, sempre de novo, que tipo de organização é necessária aqui e agora, com quais riscos, com quais salvaguardas, com quais formas de controle de base.
Talvez a lição mais fértil desse confronto não esteja em escolher um lado definitivo, mas em reconhecer que a forma organizativa anarquista não é uma fórmula fixa, e sim uma construção histórica, situada, que precisa responder tanto às exigências da luta quanto à fidelidade a um horizonte de liberdade, igualdade e solidariedade.
É nesse terreno instável—entre a urgência da eficácia e a recusa de todo poder instituído—que a conversa entre Malatesta e Makhno continua, silenciosamente, a atravessar cada assembleia, cada coletivo, cada tentativa de dar ao anarquismo não só razão, mas também corpo e continuidade.